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O MOMENTO EM QUE MEU FIM COMEÇOU



Ninguém nunca pode falar sobre como é dar o último suspiro. Durante minha vida toda, quando imaginei esse momento, eu poderia somente especular sobre como seria puxar aquele último resquício de ar que permitiria que meu coração batesse mais uma vez. Aquele último vestígio que seria o fim do fim. Porque eu sabia que meu fim já tinha começado há algum tempo, minha última respiração só seria o ponto final da história.


***


Devo confessar que não esperava que fosse assim. Desde que cheguei nesse hospital e fui internado nesse leito, foram muitas as vezes que imaginei uma mudança no rumo de minha história. Em minha cabeça, chegavam pessoas pela porta, para me acolher. No começo, imaginava meus filhos. Pensava que alguma hora algum deles entraria no meu quarto e prontamente pediria perdão pela demora. Eu, é claro, os teria desculpado, afinal, sou somente um pai que sente saudades de suas crianças. Pensei muito na minha filha Leila, em como era doce e atenciosa, pelo menos o que eu conhecia dela, e que provavelmente não deveria saber da minha situação, ou teria vindo me ver imediatamente. Mas a enfermeira me garantiu que todos meus parentes e amigos tinham sido contatados e, então, mesmo minha fé na doçura de minha caçula se esvaiu.


Depois de algum tempo, passei a imaginar minha ex-mulher. Faziam alguns anos desde nosso divórcio, divórcio tal que terminou com portas sendo batidas e coisas sendo jogadas pela janela do apartamento. Sempre gostamos de um drama. Apesar das coisas terem ficado mal-acabadas, pensei que ela, como minha companheira de mais de vinte anos, teria a decência de vir se despedir em meu leito de morte. Mas não, mais uma vez ela me decepcionou. Caso seja do seu interesse, a primeira vez que Renata falhou comigo foi quando decidiu transar com o canalha do Roberto e pôr fim ao nosso casamento. Eu soube de todo o caso quando vi uma gravata desconhecida dentro do meu armário. Perguntei pra Conceição se ela sabia de quem era, e foi então que ela me contou tudo. A moça nunca foi de guardar uma fofoca por muito tempo. Contou o nome do babaca que frequentava minha casa toda quarta à tarde. De como dava em cima da própria Conceição. Bastou para mim. Desci o esporro na Renata e a mandei embora na mesma noite. Com ela, se foram meus filhos. Ainda assim, esperava que ela me visitasse.


Parti então para a imagem do Carlão, esperando que aquele mala aparecesse. Ele era um grande amigo meu, foi quem mais me ajudou depois do meu divórcio. Foi minha companhia de bar pelas noitadas que passei no boteco do Centro. Teve uma vez que eu estava chegando numa mulher, que se esquivava, como se eu pudesse lhe causar algum mal, quando vomitei tudo que tinha dentro de meu estômago. Carlos morreu de rir, mas foi logo ao meu lado ajudar a me limpar. Na última noite que fomos no bar, as ruas já estavam vazias devido à quarentena, e ficamos perambulando por aí até o amanhecer. Demos um abraço na porta do meu prédio e nos despedimos. Durante a quarentena, ele me ligou muitas vezes, mas já não tinha paciência para lidar com ninguém. Quando fui internado, não imaginava que alguns telefonemas ignorados justificariam o total abandono no qual ele me deixou. Mas pelo visto justificou, e assim, minha fé no meu camarada se foi, junto com a que tinha em Leila.


Nos meus momentos de menor lucidez, vejo, entrando pela porta, meus pais, que há muito deixaram esse mundo. Eles estão envoltos numa espécie de névoa e se aproximam de mim com as feições fechadas. Na minha infância, não foram exatamente o exemplo de amor, nunca soube verdadeiramente o que era um casamento feliz. Meu pai batia em minha mãe e, na maior parte do tempo, eu o achava desprezível. Mas em certos momentos, achava que minha mãe tinha passado dos limites e merecia o que recebia. Ela morreu antes do meu velho, que só faleceu muitos anos depois. Não pude visitá-lo em seus últimos dias de vida, porque eu mesmo estava internado, depois de uma noite com o Carlão. Acho que durante grande parte de minha vida, segui os passos de meu pai e, perto de minha morte, não foi diferente. Como ele, cá estou, sozinho, nesse lugar frio onde só se ouve os barulhos das máquinas e os passos dos enfermeiros.


Acabou que, apesar de toda a minha imaginação, de todos os cenários que me consolaram, a tristeza me assolou afinal. Acho que tudo aquilo que nunca permiti que saísse de meu íntimo veio como uma onda inesperada. E como as ondas vêm em sequência de sete, a última semana de minha vida foi o período mais triste dela. Já tive muitos momentos desgraçados, mas em todos eles, não permiti que a tristeza viesse, e a raiva tomava seu lugar. Senti raiva minha vida toda. Raiva de todos os que me cercavam. Raiva dos que vieram antes de mim e dos que viriam depois. E, portanto, quando finalmente a tristeza se fez presente, eu me deparei com algo totalmente desconhecido. O que era aquela sensação? Pouco soube identificar o que senti. Sabia que, junto com a tristeza, estava o sentimento que me atormentou durante todo o período que estive vivo, que me fez passar noites em claro porque não havia nada que o aliviasse. A solidão. A solidão mais pura, a sensação de estar todo e completamente só. Eu sou como qualquer outro, a diferença é que nunca tive ninguém. Mesmo minha ex-mulher nunca passou de uma companheira de corpo, nunca foi parceira de alma. Nem sei se isso existe mesmo, alguém que não te faz sentir só. Porque eu, mesmo cercado de pessoas, vejo somente a mim mesmo, solto por aí. Talvez nunca tenha feito um esforço real para sentir uma conexão verdadeira. Pode ser que eu mesmo tenha afastado todos e por isso esteja aqui sozinho. O problema é que agora já dá a hora e o tempo não há mais. Porque o que me restou foi dar meu último suspiro, e como disse, é somente um ponto final.



***


Ninguém nunca pode falar sobre como é dar o último suspiro. O que lhe contei aqui, leitor, foi um modo de realizar uma apelação. Uma maneira de contar para quem quer que tenha vontade de ouvir que eu sei quando meu fim começou. Sei que, no momento que passei a descartar as relações, já não havia salvação para mim. É claro, se eu deixasse de o fazer, tornaria a ser um humano decente, se é que já fui um dia. Mas hoje enxergo minha vida com clareza. Nesse meu último suspiro, tudo que posso pensar é no momento em que meu fim começou.



Revisão: Glendha Visani

Imagem de capa: Reprodução New Indian Express

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