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O QUE É O LIBERALISMO?


"Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.

Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações."

- Ulysses Guimarães


José Guilherme Merquior, em "O Liberalismo antigo e moderno", começa sua "definição" de liberalismo parafraseando Nietzsche, segundo o qual apenas sociedades a-históricas permitem uma definição no verdadeiro sentido da palavra¹. O liberalismo, desse modo, sendo um fenômeno histórico complexo, demanda considerável esforço para que se possa compreendê-lo com alguma profundidade.


É por isso que os dicionários e enciclopédias de filosofia política por vezes iniciam seu verbete sobre liberalismo com um levantamento histórico, analisando as diferentes épocas e contextos nos quais as ideias liberais se manifestaram, bem como seus pensadores mais relevantes.


Nas discussões políticas, frequentemente o dissenso acontece pelo fato de que, ao se discutir o liberalismo, os interlocutores não estejam se referindo a mesma coisa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o termo "liberal" é utilizado para se referir aqueles mais à esquerda do espectro político, enquanto que no Brasil os liberais são em rigor vistos como de direita.


O "Dicionário de Política", de Norberto Bobbio, explica a confusão. Pois o termo liberalismo "pode, conforme o caso, indicar um partido ou um movimento político, uma ideologia política ou uma metapolítica (ou uma ética), uma estrutura institucional específica ou a reflexão política por ela estimulada para promover uma ordem política melhor, justamente a ordem liberal."


Reconheço minhas limitações a respeito do assunto e, obviamente, não procuro esgotar os sentidos que esse termo têm nesse artigo. O que gostaria de fazer é articular alguns aspectos do liberalismo a partir de leituras que fiz de escritos de José Guilherme Merquior, crítico literário e diplomata, e de Norberto Bobbio, o grande filósofo político italiano. Dessa forma acredito que contribuo com o debate a respeito do liberalismo, expondo algumas de suas ideias, sem pré-concepções necessariamente negativas.

Do ponto de vista histórico, as primeiras ideias liberais formulavam proposições que delineavam a posição do indivíduo em relação à comunidade ou ao Estado. Como dito anteriormente, o uso do termo liberal pode se referir a concepções distintas e até mesmo contraditórias, a depender do contexto político, social e institucional que se analisa.


Merquior argumenta que, apesar das diferentes proposições a respeito da arquitetura política da sociedade, o que permanece no cerne das primeiras proposições liberais é a noção de que o poder estatal deve ser contido, de maneira que seu exercício seja legítimo - e não arbitrário contra os indivíduos. Daí que o primeiro princípio liberal, segundo o autor, é o constitucionalismo, o qual prescreve "uma sociedade colocada sob o império da lei, onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência²."


Da evolução do constitucionalismo surgiu a ideia de estado de direito, representação por excelência da limitação do poder do Estado, em que não haveria mais o governo dos homens, mas sim o governo das leis. Ou seja, do estado de direito deriva o princípio de que a ação dos governantes e autoridades está subordinada às leis gerais do país. É evidente o rompimento com os fundamentos dos Estados absolutistas, nos quais a ação do soberano era limitada apenas pela sua vontade. Para Bobbio, o estado de direito em sentido forte, próprio da doutrina liberal, é aquele em que há (i) proteção constitucional de direitos fundamentais e (ii) mecanismos constitucionais que limitam ou impedem o exercício ilegítimo do poder (ex. controle do Poder Executivo pelo Poder Legislativo, uma corte jurisdicional que controle a constitucionalidade das leis, etc)³.


Assim, o estado de direito entendido por Bobbio como estado liberal "tem a finalidade de garantir os direitos do indivíduo contra o poder político e, para atingir esta finalidade, exige formas, mais ou menos amplas, de representação política. [...] Em outras palavras, não podemos olhar para o Liberalismo como sendo uma simples ideologia política de um partido, mas como uma ideia encarnada em instituições políticas e em estruturas sociais."


Mas quais direitos são esses? A tradição liberal inaugurada por Locke sustentava a proposição de que os indivíduos possuem direitos naturais. Isto é, certos direitos não dependem do Estado para existir eles são inerentes à própria condição humana. Destaca-se aqui o direito natural à liberdade. Contudo, a liberdade também possui mais de um sentido, de maneira que diferentes maneiras de se conceituar a liberdade acabam por distinguir, consequentemente, as variantes dentro do liberalismo.


Sendo a liberdade um conceito variável e complexo, Merquior realiza uma abordagem que distingue liberdade e autonomia. Partindo do pressuposto de que o indivíduo é livre antes de tudo em uma comunidade, o autor estabelece uma definição de autonomia que se dá em relação não apenas ao Estado, mas também em relação aos outros membros com os quais o indivíduo convive. A liberdade social, entendida como autonomia, é a ausência de coerção: "implica que os outros não impeçam o curso de ação que escolhemos".


A partir dessa definição básica, o autor destaca quatro principais materializações da autonomia ao longo da história. A primeira é a liberdade de opressão como interferência arbitrária. Essa é a liberdade que o indivíduo moderno espera desfrutar quando exerce papéis e atividades protegidos pela lei e pelo costume. A segunda é a liberdade política, entendida como o poder de participar na condução da comunidade. A terceira é a liberdade de consciência e crença, que teve uma participação importante como reivindicação legítima da dissidência religiosa na Europa durante a Reforma Protestante.


Finalmente, a quarta materialização da autonomia é a liberdade de realização pessoal. Nas sociedades pós-Revolução Industrial, as pessoas se sentem livres quando realizam as suas escolhas e objetivos particulares, que por vezes pouco têm a ver com o bem comum ou com os padrões da comunidade. Ou seja, a liberdade de realização pessoal pressupõe a ausência de imposição externa de um determinado modo de vida.


Com relação a definição dos tipos de liberdade, Merquior começa novamente com uma distinção, segundo ele frequentemente utilizada na filosofia política, entre liberdade no sentido clássico liberal, e liberdade no sentido clássico democrático. Para o primeiro, liberdade é ausência de coerção, enquanto que para o último, liberdade é o poder de autodeterminação.

O autor também cita Isaiah Berlin, pensador liberal importante no século XX, que dividiu a liberdade em negativa (liberdade de) e positiva (liberdade para). Refletindo os conceitos liberal e democrático de liberdade, as noções de liberdade positiva e negativa significavam, respectivamente, a ausência de interferência externa e a aspiração ao autogoverno. Ao longo da história, entretanto, essas duas noções de liberdade foram integradas, de maneira que no contexto atual da era social-liberal, argumenta Merquior, as duas perspectivas se tornam complementares.


Assim como Merquior, penso que é central para o pensamento liberal a ideia de liberdade positiva, isto é, a liberdade que se refere à autodeterminação e ao autogoverno. Não obstante a importância da ausência de impedimentos externos, a multiplicidade de escolhas disponíveis para um indivíduo talvez seja o que realmente possibilite a realização plena da liberdade. Merquior afirma que Wilhelm von Humboldt, em "Sobre os Limites da Ação do Estado", contribuiu para o aprofundamento da ideia de autodeterminação ao exprimir a "preocupação humanista de formação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal".


Kant, juntamente com Humboldt, fez com que a ideia de autotelia realização pessoal fosse colocada no centro da moralidade. Este conceito, diz Merquior, mais do que relacionado a autonomia, refere-se diretamente ao desdobramento do potencial humano. É conhecida, pois, uma afirmação fundamental de Kant de que o homem, não como animal, mas como pessoa, deve ser considerado como um fim em si mesmo.


Entretanto, há aqueles que se afirmam "liberais" e, partindo dessas premissas de liberdade, autonomia e do direito à propriedade privada, concluem que o estado deveria ser reduzido ao mínimo possível (ou até mesmo extinto), pois ele seria o principal obstáculo para a realização das liberdades individuais. Essas críticas à existência do Estado geralmente vêm daqueles posicionados mais à direita, por vezes entendendo a liberdade principalmente (ou apenas) como liberdade econômica, e atacando determinados (ou todos) serviços públicos e políticas assistenciais, pois estas seriam ações paternalistas e estatistas.


De maneira simplificada, essa posição sustenta que os indivíduos deixados sozinhos são capazes de se organizarem em harmonia de forma espontânea, de modo que a pobreza e desigualdades seriam reduzidas e até mesmo eliminadas naturalmente se o mercado fosse intocável e se as pessoas contassem apenas com o próprio esforço.


De fato, Merquior defende que do ponto de vista histórico-empírico, a economia de mercado demonstrou ser mais eficiente na produção de riqueza do que as economias planificadas. Mas o diplomata rejeita essa concepção "estadofóba" veementemente. Merquior entende o estado de bem estar social como fundamental para que, por exemplo, na época do pós-guerra, a Europa ocidental não fosse consumida por movimentos políticos autoritários de viés totalitário e socialista. Isto é, foram as intervenções do Estado na economia e as políticas públicas assistencialistas que permitiram o avanço das democracias liberais e, consequentemente, a defesa dos direitos individuais.


Com relação ao Brasil, Merquior afirma que "em sociedades como a [nossa], não me canso de repetir, o problema do Estado não tem uma e sim duas faces. Pois a verdade é que temos, ao mesmo tempo, Estado demais e Estado de menos. Demais, certamente, na economia, onde, em diversas áreas, o Estado emperra, desperdiça, onera e atravanca. De menos, no plano social, onde ainda são gritantes — e se tornaram inadmissíveis — tantas carências em matéria de saúde, educação e moradia."


Ora, certamente o autor reconhece que, em sociedades tão desiguais como a brasileira, o Estado é um instrumento fundamental para que as liberdades — sobretudo as liberdades positivas — sejam garantidas aos mais pobres. Os indivíduos, para exercerem sua liberdade de maneira plena e satisfatória, precisam de condições materiais mínimas, sem as quais essa mesma liberdade se torna apenas privilégio daqueles que tiveram a sorte de nascer em famílias estruturadas economicamente.


Da perspectiva da autodeterminação e auto realização, do que adianta dizer a um homem pobre, miserável e faminto que ele está livre para empreender? Parte-se muitas vezes de uma concepção errada de que a geração de riqueza depende unicamente de um ato da vontade. A vontade, ou esforço, é apenas uma das variáveis da complexa equação que gera o valor. Esquece-se também do papel fundamental que a educação em sentido amplo tem para que um indivíduo seja livre. Como já provocou outro importante pensador liberal brasileiro, Eduardo Giannetti: do que adianta eu dizer a um analfabeto que ele é livre para ler Machado de Assis?


Em entrevista, Giannetti faz um argumento que reflete o humanismo de Humboldt na ideia de formação da personalidade e autodeterminação, de "educar para a liberdade, e libertar para educar [Bildung]¹⁰". Ele afirma: "A igualdade de oportunidades é fundamental para que a liberdade floresça. Uma pessoa que não desenvolveu seus talentos, seu potencial e não recebeu, na etapa apropriada da vida, uma capacitação, a liberdade para ela é uma coisa vazia. [...] O que a gente precisa entender é que a liberdade substantiva depende de oportunidades para desenvolver os potenciais humanos. Uma criança que nasce numa família de baixíssima renda, sem acesso a um mínimo de educação adequada, sem coleta de esgoto no domicílio, pegando doenças crônicas na primeira infância, vivendo à mercê de uma violência estúpida no seu dia-a-dia, é uma pessoa que nasce com um horizonte de escolhas extremamente restrito; a condição da família em que ela nasce será mais determinante no seu futuro do que provavelmente qualquer outra escolha que ela possa fazer.¹¹"


Portanto, partindo dos pressupostos liberais de que o indivíduo tem o direito natural a liberdade, e de que todos devem ter a possibilidade de realizá-la de maneira plena, é fundamental a existência de um estado que garanta condições materiais básicas e capacitação a todos os cidadãos. De maneira alguma se descarta a importância do mercado, o importante é que a intervenção do Estado não deve ser a priori considerada negativa. Antes de tudo, é preciso avaliar em cada caso quais são os fundamentos que a justificam, os objetivos que ela busca atingir, e se há experiências precedentes que confirmam sua eficácia. Termina Merquior lembrando Serge-Christophe Kolm: "liberalismo não quer dizer menos Estado — quer dizer mais liberdade".


Mas uma coisa são os que se dizem liberais¹², outra coisa é o liberalismo.


Por fim, Bobbio também reconhece, assim como Merquior e Giannetti, que o pensamento liberal preconiza, além da igualdade jurídica (igualdade perante a lei), a igualdade de oportunidades, "que prevê a equalização dos pontos de partida, mas não dos pontos de chegada". Na verdade, para o filósofo italiano, o estado liberal é o precursor natural da democracia moderna.


Contudo, atenta Bobbio que essa proposição deve ser entendida observando não o aspecto igualitário da democracia, que busca a igualdade econômica, mas sim sua fórmula política, isto é, a soberania popular¹³. A única maneira de se exercer a soberania popular com plenitude, segundo o autor, é estender ao máximo os direitos de participação política (liberdades políticas) a todos os cidadãos.


O filósofo argumenta que nas democracias liberais modernas, as liberdades individuais e a soberania popular se tornaram fortemente interdependentes. A melhor maneira de garantir que os governantes não violem ou limitem as liberdades individuais está na possibilidade do cidadão de participar, direta ou indiretamente, na formação das leis. Em contrapartida, para que seja possível o bom funcionamento do sistema democrático, é imprescindível que os cidadãos não sejam constrangidos no seu exercício de participação política, isto é, é preciso que os cidadãos gozem das liberdades de opinião, de imprensa, de reunião — das liberdades que constituem o estado liberal — de maneira que sua participação seja real e não fictícia¹⁴.


Certamente, muitos aspectos do liberalismo foram deixados de fora. Entretanto, acredito que fui capaz de expor algumas ideias importantes de maneira a não reduzir o pensamento liberal a uma simples doutrina econômica, como se faz frequentemente. Liberalismo não é apenas Hayek, Mises, Friedman ou Nozick¹⁵.


A história do pensamento liberal têm protagonistas muito diversos. Parafraseando (e adaptando) Merquior, dentro do espectro liberal há sim Locke, Mill, Kant, Smith, Madison e Tocqueville, mas também Weber, Keynes (sim, Keynes), Berlin, Rawls, Bobbio¹⁶, Vargas Llosa, Giannetti e Dworkin.


Esse é outro aspecto muito importante do Liberalismo, isto é, o reconhecimento e a defesa da pluralidade de valores e visões de mundo. Talvez este seja assunto para um próximo artigo.


REFERÊNCIAS:

¹ MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 40

² "O argumento liberal", de José Guilherme Merquior. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/merquior-argumento-liberal-e-realizacoes/

³ BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 19

BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 691

MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 47

MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 56

MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 57

Aqui me refiro aqueles que ainda têm algum compromisso com a justiça social.

"Renascença dos liberalismos: a paisagem teórica", de José Guilherme Merquior. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451987000300005&lng=en&nrm=iso

¹⁰MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. 3. ed. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 56

¹¹Conferir entrevista de Giannetti ao Roda Viva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_zq54vhdQBw (37:33)

¹²Certamente esses "liberais" estão mais próximo do libertarismo (ou libertarianismo) do que do liberalismo.

¹³BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 43

¹⁴BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 44

¹⁵Sejamos justos, esses autores também não pensavam o liberalismo apenas como uma doutrina econômica. Contudo, aqui Merquior faria a distinção que fez Benedetto Croce entre liberais e liberistas. Os primeiros defendem sobretudo os princípios éticos e as instituições políticas do liberalismo; já os últimos colocam em prioridade a liberdade econômica e o laissez-faire.

¹⁶Bobbio se dizia defensor do socialismo liberal.


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