Os Segredos da Sociedade Saudita
- Julia Santos
- 22 de set.
- 7 min de leitura

Assim que a porta automática se abre, o ar sopra um bafo quente no meu rosto, como se eu tivesse aberto o forno – só que aqui eu não tenho a opção de fechar a tampa. O calor é pungente, parece que o sol da Arábia Saudita está mais próximo que as nuvens (na verdade, não há nuvens no céu) e as moléculas do ar estão tão grudadas umas nas outras que não há brecha para a expiração, o espaço oprime qualquer tentativa de escape.
“Táxi? Táxi? Táxi!” – homens nos abordam assim que colocamos um pé para fora do aeroporto. Cobram entre 80 e 100 Rial pela viagem de 40 minutos – o que equivale a um valor entre 115 e 150 reais, aproximadamente. O carro é espaçoso, assim como as malas, a rádio é totalmente incompreensível, o trânsito é assustador. O semáforo abre e começam a buzinar loucamente. Os carros estão amassados na traseira ou na lateral, a lanterna remendada com fita adesiva, alguns têm proteção de borracha no retrovisor – prevendo uma colisão ou uma simples trombada durante a troca de faixa, em que as setas não foram utilizadas. Os policiais estão à paisana, prontos para aplicar multas – ainda que o seu critério eu desconheça.
Alguns carros são conduzidos por mulheres de abaya, hijab e niqab. O primeiro é um vestido longo e largo, preto, que esconde quaisquer curvas em nome dos bons costumes. O hijab, também preto, é um lenço que cobre os cabelos. Já o niqab é opcional – o uso não é obrigatório por lei, ainda que haja um consenso social quanto ao seu uso pelas mulheres sauditas –, deixa apenas os olhos à mostra. Uma minoria das mulheres usa a burca, que cobre o olhar com um tecido preto, mas essas não dirigem e são, em sua maioria, mulheres mais velhas. Estrangeiras não precisam vestir nada disso; mulheres de outros países árabes podem usar somente abayas e hijabs, com tecidos de cores variadas, a depender da rigidez aplicada aos costumes em seu país de origem. Mulheres ocidentais podem deixar o cabelo à mostra, mas é recomendado o uso de roupas que cubram os ombros e joelhos, que não tenham decote (não mostrar as clavículas) e nem sejam muito justas (um jeans skinny talvez não seja a melhor opção).
Nos últimos anos, as mulheres sauditas vêm conquistando cada vez mais participação na esfera social. Em 2017, o rei aprovou uma ordem que permite o acesso a serviços governamentais às mulheres sauditas, como educação e saúde, sem a necessidade da permissão de um tutor. O direito de dirigir veio em 2018, de obter passaportes e viajar sem a permissão de um responsável do sexo masculino no ano seguinte [1]. Desde 2021, podem viver sozinhas (sem precisar da permissão de um parente do sexo masculino) [2]. As mulheres sauditas podem ir à universidade, mas as turmas são separadas por gênero. Podem ter empregos e o próprio dinheiro para gastarem como quiserem – no caso de serem casadas, é tradição da cultura islâmica que o marido tenha que cobrir todos os custos da casa (e prover igualmente para todas as esposas em caso de relacionamento poligâmico). Todas essas reformas derivam do plano lançado em 2016 pelo príncipe Mohammed Bin Salman, o Visão 2030, que prevê a modernização da economia e sociedade saudita por meio do desenvolvimento de diversos setores como turismo e tecnologia, além da ampliação da participação das mulheres nos âmbitos econômico e social [3].
Entretanto, dizer que na Arábia Saudita há “empoderamento feminino” é absurdo. O conceito de empoderamento feminino é derivado de um feminismo ocidental que se expandiu dentro de um contexto totalmente distinto da situação atual das mulheres sauditas. Reduzir as recentes conquistas de direitos dessas mulheres a uma questão de “empoderamento feminino” me parece uma tentativa de ocidentalizar o oriente, de simplificar suas nuances políticas e culturais de modo a agradar o olhar ocidental. Claro que as mulheres sauditas não são seres passivos, sem opiniões, que não lutam ou não se importam pela própria emancipação – nesse ano de 2025, Manahel al-Otaibi, de 30 anos, foi condenada a 11 anos de prisão por postar vídeos de si mesma usando “roupas indecentes” e pedir pelo fim do sistema de tutela nas redes sociais, de acordo com a Anistia Internacional [4]. Ou seja, não significa que as mulheres sauditas não sejam “empoderadas” – já que gostam tanto do termo – ou que não comemoram a conquista de novas liberdades: a prova disso são as mulheres no volante e no mercado de trabalho – meu problema com essa projeção do feminismo ocidental reside no fato de que não é tão simples assim.
A tradição religiosa é o alicerce da sociedade saudita, moldando sua cultura, costumes e política nacional e internacional. Por exemplo, ao meio-dia e ao pôr do sol, os auto-falantes dos shoppings emitem uma mensagem gravada e repetitiva, alertando todos quanto ao momento de rezar, ou para si mesmos enquanto bebem um café do Starbucks, ou dentro de uma sala específica que fica perto dos banheiros – com o chão coberto por tapetes, já que eles rezam descalços (com homens e mulheres separados em diferentes salas, assim como nas mesquitas).
Ainda que a ampliação dos direitos das mulheres na Arabia Saudita seja individualmente significativa, suas implicações na sociedade saudita como um todo não são substanciais. As mulheres ainda sentem que precisam usar a abaya, o hijab e até o niqab (mesmo que o uso deste último não seja obrigatório) não só porque são socialmente mais aceitas dessa maneira, mas também porque têm medo, principalmente, de assédio. Enquanto as mulheres tem que andar como fantasmas, os homens sauditas podem usar bermuda e chinelo no dia a dia, porém são obrigados a usar sua vestimenta tradicional, o thobe (uma túnica longa e branca) e o ghutra com igal (um lenço para a cabeça e a corda preta para prendê-lo) dentro de órgãos governamentais. É como se o olhar masculino tivesse se acostumado, não com mulheres reais, mas com projeções do que as mulheres deveriam ser de acordo com a interpretação mais radical do islamismo, mais especificamente da Sharia, um conjunto de leis e costumes que definem mais severamente o comportamento de afegãos, iranianos e sauditas. Quaisquer digressões da lei, portanto, são recebidas com igual radicalismo.
Claro, o corpo de uma mulher é sempre um convite – seja no Ocidente ou no Oriente, ainda que em circunstâncias distintas, o resultado é o mesmo. No caso da Arábia Saudita, responder o bom dia de um homem desconhecido com igual educação acarreta em perseguição no supermercado – se, claro, você não está devidamente coberta. Olhares penetrantes de homens quando você passa na rua de jaqueta e calças jeans, com o cabelo solto e o rosto pinicando por causa da areia – olhares curiosos das mulheres, sorrisos das crianças que acham tudo aquilo muito inusitado (como se eu estivesse andando fantasiada de fada no meio do shopping).
A esfera política internacional também influencia a crescente participação das mulheres, assim como resulta em uma maior abertura da Arábia Saudita para a chegada de estrangeiros, especificamente devido a maiores oportunidades de emprego para europeus, latino-americanos e estadunidenses – para além do trabalho informal realizado majoritariamente por indianos e paquistaneses. O Visão 2030 faz parte de uma estratégia do governo saudita de aproximação com o ocidente, especialmente com os Estados Unidos, por motivos econômicos. Em Maio deste ano, os dois países anunciaram ‘uma parceria econômica e estratégica’ no valor de aproximadamente 3,3 trilhões de reais [5].
É conveniente para a agenda do governo americano e para a mídia ocidental no geral que as notícias recentes que circulam sobre a Arábia Saudita sejam sobre as conquistas das mulheres, e não sobre as violações dos direitos humanos, como as 46 execuções realizadas até Julho de 2025 (sendo 37 destas por conta de crimes relacionados a drogas) ou as 1816 execuções desde 2014, em que 75% dos executados eram estrangeiros de países como o Egito, Etiópia, Paquistão, Jordânia, Nigéria, Somália e Síria [6]. Também é conveniente não mencionar a situação dos casamentos arranjados no país, acredito que desconhecida por muitos, que resultam em casais apáticos e silenciosos, ambos com fones de ouvido sentados na mesa de um restaurante, sem trocar olhares.
Devido ao sistema de tutela masculina vigente no país, as mulheres não podem escolher com quem se casar, pelo menos não sem a permissão de um parente homem, como um pai ou irmão. Como consequência, pelo menos 4 em cada 10 sauditas casam-se com familiares, principalmente primos [7], uma vez que, culturalmente, as famílias preferem manter a riqueza e o status dentro do núcleo familiar. Tal tradição remonta à Arábia pré-islâmica, na qual as uniões consanguíneas eram realizadas para evitar a mistura com outras tribos. A consanguinidade acarreta o aumento da incidência de doenças genéticas na população saudita [8]. Na tentativa de mitigar o problema, o governo saudita desenvolveu programas de testes genéticos para identificar casais de risco, além de financiar um programa para o mapeamento completo do genoma da população saudita.
Se as mulheres tiverem a liberdade de escolher seu parceiro, é possível que as taxas de consanguinidade diminuam – ou talvez não. Quando o funcionamento de uma sociedade está tão intimamente ligado aos costumes patriarcais e ao tradicionalismo religioso, basta a liberdade de escolha das mulheres para uma mudança efetiva? Eu espero que sim, mas não tenho certeza. Não é tão simples assim.
Ainda que eu tenha passado tempo suficiente no país para perceber e analisar todas as nuances da sociedade saudita descritas no texto — algumas extraídas de experiências pessoais e outras de histórias que ouvi — seria arrogante da minha parte me colocar no lugar das pessoas, principalmente das mulheres sauditas, que experienciam diariamente o regime e suas transformações culturais. Finalizo então com dois poemas da poeta saudita Fawziyya Abu-Khalid [9]. Talvez seja possível, afinal, pensar nas mulheres sauditas como símbolos de esperança e força.
Seu cabelo é longo, muito, muito longo,
Ela envolve as pontas em seus pés enquanto se levanta.
Seus dedos são longos, muito, muito longos,
Ela colhe o fruto da árvore-de-lótus sentada em seu boudoir.
Ela se banha na chuva que jorra de seu colo,
E ela sonha.
– Um País, Fawziyya Abu-Khalid
Para minha irmã mais nova
Minha mãe legou a mim suas mãos pálidas,Que não conseguiram reter as pontas do seu xale desfiado.Legou-me a voz sufocada,Que não pôde, atrás da porta, gritar por socorro.
Minha mãe legou a mim seu silêncio,Que se curvava como um junco ao vento na sala de visitas.Legou-me seus olhos paralisados,Que se fixavam nas frestas do teto, contando os buracos.
Minha mãe legou a mim seu medo,Que se aninhava como um ouriço sob a cama de casado.Legou-me sua resignação,Que se enrolava como um cinto de obediência ao redor da cintura do meu pai.
Minha mãe legou a mim sua paciência,Que se arrastava como um verme sobre as brasas do fogão.E legou-me a chama de seu ódio,Que ela alimentou com os espinhos de seu sonho falhado.
Mas eu, oh minha irmã,Vou legar a você uma espada.
– A Herança da Mãe, Fawziyya Abu-Khalid
Autoria: Julia Santos
Revisão: Ana Clara Jabur
Imagem de Capa: Getty Images
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