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PACAEMBU, UMA ELEGIA




Começou assim: "Tenha as cadeiras do Pacaembu na sua casa", anunciava o link no buscador para o site da Tok&Stok, a loja de móveis e decoração. No site, uma imagem destacada de duas cadeiras do Pacaembu — nome popular do Estádio Paulo Machado de Carvalho, localizado no bairro homônimo na zona oeste de São Paulo — no texto inscrito ao lado, em uma cínica sacada de um publicitário que tenta despertar empatia: "Cadeiras originais do seu, do meu, do nosso Pacaembu.". Assim se monta a farsa: por R$ 1800,00, o consumidor que assim desejasse poderia adquirir uma cadeira retirada das obras de reforma do estádio, que começaram assim que assinado o contrato de concessão do espaço por 35 anos, realizado na gestão do ex-prefeito, ex-governador, ex-presidenciável e ex-político João Dória (2018-2019).


A ideia causou revolta, sendo alvo de uma representação no MP-SP realizada pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL), e quem a sugeriu provavelmente sabia que isso iria acontecer. Ora, como aponta a Janela de Overton — que descreve o processo no qual ideias absurdas lentamente vão ganhando aceitação no debate público, até que sejam tomadas como normais — o importante não é que a proposta seja aceita de imediato; a mera sugestão do disparate como razoável já é suficiente. Assim como aquele que dá a mão, e o outro quer logo o pé, é questão de tempo para a aparição de outra controvérsia envolvendo a concessão do estádio.


O valor histórico, futebolístico e sentimental do Pacaembu precede sua construção: inaugurado em 1940 já com o título de "estádio mais moderno da América Latina", seu exuberante estilo art déco o consagra imediatamente como uma peça rara entre os estádios brasileiros. Nos anos que se seguiram, ali se teve de tudo: de nomes como Leônidas da Silva, Pelé e Ronaldo driblando e goleando em seu gramado, até shows de bandas como Pearl Jam, Rolling Stones e Deep Purple; da visita do Papa Bento XVI, em 2007, até seu uso como hospital de campanha no auge da pandemia de COVID-19, em 2020. Mas seja quem estivesse ocupando sua cancha, seu ofício principal era sempre respeitado: a de templo oficial do futebol paulistano e paulista.


Eternizado em seu icônico bordão "O seu, o meu, o nosso Pacaembu", que sintetiza o senso de comunidade que seus 37.730 assentos representam, o Pacaembu sempre serviu aos times do Trio de Ferro (São Paulo, Corinthians e Palmeiras) e do Santos. Foi palco de jogos inesquecíveis, como as campanhas vitoriosas de Santos e Corinthians nas Libertadores de 2011 e 2012 — é impossível pensar nos gols vencedores de Neymar e Emerson Sheik sem visualizar a arquibancada explodindo ao fundo —, e também de jogos não tão inesquecíveis assim, como aqueles que se passam na Série B de 2013 do time alviverde ou qualquer jogo do time tricolor em sua temível fase da última década. O Pacaembu também é o palco da final da querida Copinha, a Copa São Paulo de Futebol Júnior, o principal campeonato de futebol de base no futebol brasileiro, que sempre abre a temporada do futebol brasileiro, em janeiro.


Quando Dória assumiu o cargo de prefeito de São Paulo, em janeiro de 2017, a concessão do Pacaembu já estava na mira do então mandatário: o estádio se inseria em um plano maior de privatizações e concessões de espaços públicos paulistanos denominado Plano Municipal de Desestatização (PMD), estabelecido pela Lei 16.703/2017. O processo de concessão do estádio se iniciou em junho de 2017, quando a prefeitura publicou o primeiro edital para propostas de interessados na concessão, e terminou em janeiro de 2020, quando a Allegra Pacaembu, consórcio vencedor da concessão, assumiu a administração do complexo, que, além do estádio, compreende um centro esportivo, com ginásio, piscinas, e quadras de tênis.


A justificativa do então prefeito é conhecida: cedendo o complexo ao setor privado, supostamente a gestão do espaço seria mais eficiente e correta, e a qualidade do serviço melhoraria imediatamente. Essa falsa dicotomia é recorrente no debate público brasileiro quando o assunto é privatização: o serviço da iniciativa privada é necessariamente mais eficiente e de melhor qualidade, ao contrário daquele prestado pelo setor público, que sempre é ruim e de baixa qualidade. Mesmo que seja falso e nivele o debate por baixo, esse discurso se mostra presente na questão envolvendo a outorga do estádio.


Não nos importa o eterno debate entre o privatizado e o estatal. Mas no caso do Pacaembu, a sua concessão ameaça um dos principais pontos a favor do estádio: sua acessibilidade. Em tempos de arenas com ingressos a preços proibitivos, o Pacaembu se mantinha como uma opção esportiva cujo acesso não beirava valores abusivos. Sua acessibilidade não é apenas econômica: sua localização, perto de estações do metrô, e sua tradição desportiva cementam-no como local perfeito para usos alternativos do estádio, já que seus históricos locatários, os times masculinos de Santos e Corinthians, não o utilizam mais. Uma possível solução estaria no futebol feminino: uma modalidade que ganha cada vez mais exposição, com times de ponta na capital, mas com partidas ainda disputadas em campos mal cuidados e distantes do centro da cidade. Tornar o Pacaembu a casa oficial do futebol feminino paulista era uma possibilidade plausível em um contexto em que a importância do estádio vinha decrescendo. Mas nada foi feito.


Outro risco possível que a concessão do estádio traz é sua descaracterização. O apelo do Pacaembu, aos olhos dos torcedores, é também estético: é sua icônica fachada, com ares clássicos; suas coloridas cadeiras em tons amarelos e laranjas; e até mesmo sua clara diferenciação entre os setores do estádio, com destaque ao Tobogã (setor de arquibancada atrás do gol do estádio, que, durante as atuais reformas, foi demolido). O Tobogã é um caso especial e interessante de se analisar, pois não fazia parte da estrutura original do estádio — sendo construído em 1969, na gestão de Paulo Maluf, após demolição da concha acústica que ali originalmente ficava — e, por consequência, poderia ser alterado, ao contrário do resto da estrutura do complexo, que fora tombada em 1998. O que não era o caso quando se tratando da venda das cadeiras, já que, pelo fato do Pacaembu ter sido concedido e não vendido (ou seja, a Prefeitura autorizou o uso do espaço por uma empresa privada, mas com o estádio continuando patrimônio público), suas cadeiras não poderiam ser comercializadas, pois o estádio continua sendo propriedade do Estado.


A demolição do Tobogã, mesmo estando nos conformes legais, simboliza o início de um projeto que tem como intenções declaradas de transformar um estádio único da paisagem futebolística brasileira em mais uma arena multiuso com restaurantes, escritórios e um hotel. Se vão as cadeiras clássicas, agora prontas para venda em sites de decoração; se vai o eterno Tobogã, uma construção polêmica, mas que ao longo dos anos ganhou seu valor, e entra um complexo de invencionices, totalmente descabidas de propósito naquele espaço. Na eterna linha de montagem das novas arenas brasileiras, em que os clássicos estádios são substituídos por réplicas suas sem vida, atendendendo ao jargão da "modernização" — como se esta por obrigação se opusesse à lógica da tradição —, se vai o Meu, o Seu, o Nosso Pacaembu, e entra em campo o Pacaembu deles — de Allegra Pacaembu, de João Dória, de uma cidade que odeia seu passado, que trabalha incansavelmente para que ele seja queimado, até que não sobre mais nada.


Bom, ainda é necessário dar o benefício da dúvida: a reforma se estende até 2024 e quem sabe até lá os atuais proprietários do estádio entendam que o Pacaembu é, acima de tudo, um estádio de futebol, e não um centro de compras. Mas, o prognóstico não é nada positivo: em um processo marcado por falta de transparência, desrespeito com o valor histórico do estádio e até mesmo transgressões legais (como a situação envolvendo a venda das cadeiras), é difícil pensar que a concessão resolverá os problemas do Pacaembu, que existem e poderiam ser resolvidos na própria gestão pública do estádio. As memórias de lágrimas, êxtase e devoção permanecem, mas o Pacaembu que nós conhecemos se esvai lentamente, à taxa de uma cadeira por vez.




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Autoria: João Pedro Fernandes

Revisão: Guilherme Caruso e Beatriz Nassar

Foto de capa: Eduardo Knapp/Folhapress. Reprodução: Folha de São Paulo




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