A cada dois anos, no Brasil, discutimos se resultados de uma eleição podem nos ajudar a predizer os resultados da seguinte, normalmente buscando nos resultados municipais indicadores para as eleições presidenciais. Em suma, biênio a biênio, procuramos por termômetros sociais que nos mostram as principais tendências do que a sociedade está mais ou menos propensa a valorizar ou repudiar.
Com as eleições e reeleições dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, PSDB e PT respectivamente obtiveram um ganho expressivo no pleito municipal. Em 2016, ano do Impeachment de Dilma Rousseff, assistimos à eleição de uma de nossas classes políticas mais conservadores desde a redemocratização, como também ao fortalecimento da “onda conservadora”, supostamente despertada pelas manifestações de 2013 e oxigenada por uma contestação das eleições presidenciais de 2014. Instaurou-se uma profunda crise econômica e sucessivos enroscos do governo federal em descompassos políticos.
Os agentes que surgiram surfando na onda de conservadorismo se auto intitulavam como membros de um movimento a favor do Brasil, sem políticos de estimação- de preferência, sem políticos de qualquer classe- e que havia chegado para ficar. Dois anos depois, Jair Bolsonaro era eleito Presidente da República, trazendo consigo delegação de deputados e senadores aliados e promovendo crescimento exponencial de seu então partido, o PSL.
Fonte: Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/eleicoes-2020-partidos/
Passado o primeiro turno da eleição para prefeitos e vereadores de 2020, qual o nosso saldo? Fato é que o grande vencedor destas eleições são os políticos. E por políticos, me refiro às tradicionais figuras representantes da ideia de que jogador bom é jogador experiente; e que, para jogar bem com as regras do jogo e conseguir dar uma vida melhor às pessoas, renovação rasa, indignação preguiçosa, falar grosso e “acabar com tudo o que está aí” não é suficiente.
Meu palpite é o de que a pandemia e crise múltipla fizeram com que os indivíduos olhassem com mais cuidado para “tudo o que está aí”, para a gestão pública, para o papel dos aparelhos do estado e para a capacidade de gestão e atendimento de demandas sociais por parte dos dirigentes públicos, tudo o que tanto, para bem ou para mal, precisamos. Se em 2018 o brasileiro votou com sede de uma virada na mesa, tal aventura não se mostrou tão compensatória até aqui. Em nível municipal, partidos do chamado “Centrão”, grupo congregador de descendentes do partido ditatorial Arena, que, portanto, de “centro” tem pouco, ganharam crescimento exponencial - DEM, PP, PSD, Republicanos e outros - enquanto partidos da extrema-direita se viram definhar. Não à toa, o assessor palaciano Filipe Martins se deu a liberdade de realizar uma autocrítica pública, fugindo dos padrões de comportamento da corja bolsonarista:
Enquanto batíamos cabeça para fazer o básico e tentar nos organizar, a esquerda se renovou, assimilou as lições de 2018 e soube usar a internet e a nova realidade política a seu favor. Ou fazemos a devida auto-crítica, ou nossos erros cobrarão um preço ainda maior no futuro.
--Filipe G. Martins (@filgmartin) November 16, 2020
E a Deputada Federal Carla Zambelli também se juntou aos conservadores no divã:
O que houve com os conservadores? Erramos, nos pulverizamos ou sofremos uma fraude monumental?
— Carla Zambelli (@CarlaZambelli38) November 16, 2020
O líder de tais figuras, por sua vez, não demonstrou ser um bom perdedor, não chocando ninguém, e sobre isso é válida a dedicação de algumas linhas. O presidente da república, antes de mais nada, é um presidente sem partido: após a sua barulhenta e atrapalhada saída do partido que o elegeu (o nono em sua carreira política), Jair Bolsonaro não conseguiu - ou simplesmente desistiu - de formar seu partido próprio, o Aliança Pelo Brasil. Sendo assim, desde então, age com autonomia para apoiar quem bem entende. Tímido, ao início, o presidente demonstrou não ter interesses em apoiar explicitamente candidatos nestas eleições, talvez por insegurança. Todavia, com o passar do tempo, a cautela e parcimônia cumpriram com o padrão de durarem pouco e abriram espaço para apoios descarados em lives e posts em redes sociais. Após um resultado desprezível, com apenas dez de quarenta e cinco vereadores eleitos e nove de treze candidatos a prefeitos derrotados, Bolsonaro não só apagou os posts, como negou ter apoiado qualquer candidatura publicamente, mais uma vez seguindo seu padrão clássico e destilando alegações que não condizem com a realidade - mentindo.
Paralelamente a isso tudo, não se pode deixar de considerar um outro movimento nestas eleições, tão importante quanto os outros que já foram citados: a tendência de desmantelamento da hegemonia do Partido dos Trabalhadores na liderança no campo da esquerda. Ainda que comparavelmente tímido, falando-se em parâmetros nacionais, é inegável o avanço do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) nestas eleições, junto a uma continuidade de encolhimento do PT, que já ocorre desde 2012.
A partir deste cenário, é possível antever dois cenários possíveis para 2022:
1) O PSOL toma de vez a hegemonia no campo progressista, formando uma frente ampla capaz de disputar o pleito - notável o fato de que Guilherme Boulos já o fez para a sua campanha à prefeitura, unindo em propaganda eleitoral o apoio de três dos principais nomes do campo progressista que disputaram (mesmo que indiretamente) a eleição de 2018: Ciro Gomes, Marina Silva e Lula. No dia de amanhã, saberemos se tal estratégia foi capaz de alçar o partido à prefeitura da cidade de São Paulo, um acontecimento histórico;
2) O PT racha de vez com as forças convergentes nos campos progressistas, em busca de retomada da liderança única, ocasionando em um conflito que poderá drenar energias de emergentes como o PSOL; e em 2022 veremos um cenário de extrema direita disputando as reais chances de eleição com a própria direita ou centro-direita, enquanto a esquerda permanece desarticulada.
Sobre essa centro-direita, inclusive, é possível notar uma sequência de movimentos também interessante acontecendo ultimamente. Algumas das figuras inicialmente jogadas ao bolsonarismo através do lavajatismo e do antipetismo, que depois foram enxotadas ou fizeram questão de se auto-enxotar de Brasília, como Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta, demonstram estarem prontas (ou ao menos preparando-se através de almoços e jantares discretos) para apresentarem-se como uma alternativa em 2022. Uma alternativa que não mais representa uma aventura eleitoral apolítica, mas que ainda traz consigo a rejeição ao legado petista. Uma “terceira via”, como está na moda de se dizer. Talvez a rejeição à extrema direita aliada a um rancor remanescente de pautas e campos progressistas ligados a ideias “de esquerda” possam atuar como fortes canalizadores para o ganho de adeptos e eleitores a este grupo, resta-nos observar.
Diante de isso tudo, pode-se afirmar com segurança de que o bolsonarismo sai abalado de 2020. Infelizmente, não por 170 mil vidas de brasileiros perdidas em meio a uma pandemia que atravessará também 2021, não por uma profunda crise econômica, não por níveis escandalosos de corrupção e desvios institucionais expostos ao país em uma base diária, não por um país ainda conivente com o racismo estrutural e ainda não resolvido com tantas outras chagas de seu passado. Isso tudo nunca abalou o bolsonarismo, pois é seu combustível e alicerce. O que abalou o bolsonarismo foi o cansaço e desânimo de cidadãos em serem governados contra tudo o que está aí, em outras palavras, governados por nada.
As eleições municipais nos mostram que em 2022 não existe cenário certeiro quanto ao que escolheremos para abraçar enquanto nação. Se, de um lado, a saída “ao centro” do delírio bolsonarista nos joga de volta aos braços de uma política fisiológica, igualmente corrupta e retrógrada, as movimentações à esquerda nos indicam uma mudança cada vez mais forte de paradigma tático e discursivo. Enquanto isso, uma “nova” proposta arquiteta sua auto proclamação de via alternativa aos que desejam a manutenção de um país longe das supostas mazelas esquerdistas e também livre do bolsonarismo.
‘Estadão’ analisa o resultado da apuração das Eleições 2020 - YouTubeForo de Teresina ao vivo no 1º turno - YouTube
Imagem da capa: Diêgo Arthunes
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