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Para virar Barbie, não se pode ser plástico



Iris Apfel, que outras vezes citei nessa revista, morreu no sábado (02), aos 102 anos. Pode-se dizer que ela teve tempo de ser tudo: jornalista, ilustradora de moda, mulher empreendedora, empresária de sucesso, designer e decoradora da Casa Branca de Kennedy, Nixon, Eisenhower e das casas igualmente presidenciais de Greta Garbo e Estée Lauder. Ícone do presente (um tempo com tão poucos), virou documentário lançado em Cannes, boneca Barbie e Exposição do MET de Nova York. Certamente, muita gente reconheceria na hora a senhorinha de óculos ovais enormes, pulseiras e estampas poderosas - mas, antes de tudo, alguém com algo cada vez mais raro: identidade. 


A voz grossa e a atitude dela é algo que homens e mulheres, arrisco dizer até hoje, tentam esconder. Num tempo em que o mais “elegante” a se fazer é falar pouco (ou melhor ainda, não falar nada), usar bege, nude, pintar a casa de cinza e construir prédios em formato de vídeo-game com janelas espelhadas (no Brasil, faz 40°C, por Deus!), fica a impressão que estilo, um je ne sais quoi, borogodó, identidade e personalidade, são muito passé, démodé demais para se assumir. 


Uma moça famosíssima passa o dia nos stories olhando por cima da pessoas, “ensinando” barbaridades e distribuindo grosserias do tipo “cafona, cafoníssimo!”, “mulher elegante não toma cerveja!”, “brega, brega, brega!”, "a mulher tem que se submeter ao homem", “isso é coisa de pobre!”, “emagreça!”. Quatro milhões de pessoas seguem. Claro, nada mais seguro – num tempo em que a gente anda tão inseguro de tudo – do que se moldar para padronizar, para cortar o individual, buscar validação. A crítica infundada às personalidades não é ensinar etiqueta, protocolo, o adequado numa ocasião. Isso é juízo de valor covarde porque simplesmente minora, reduz as pessoas no que é o individual. Quem fez curso de oratória pega na hora a sacanagem: câmera de baixo, olhar superior e argumento de autoridade (sem autoridade no argumento). Pedante, esnobe, bully! Mexe com a autoestima das pessoas, pinça nossas incertezas. Um negócio-da-China é, ainda hoje, colocar as pessoas em posição inferior porque elas não são o seu espelho. E Iris Apfel, por 102 anos, ensinou o contrário. 


Para virar boneca Barbie, paradoxalmente, não se pode ser plástico. E para ter qualquer qualidade na vida, segundo Churchill (que seria absolutamente cafona porque usava macacão jardineira, gravata de poás e falava com a língua enrolada) antes de tudo, é preciso ter coragem. Mas, quando todo mundo quer caber num padrão sem sentido, morar numa casa cinza, não “parecer pobre”, nem tomar cerveja porque não é chique, tudo o que se quer é ser plástico e tudo o que se consegue é não ser corajoso para ir além disso. 


Ninguém vai lembrar dessa pobre de espírito por usar bege e ser grosseira. Todo mundo vai lembrar da Iris e lembra do Churchill. Todo mundo vai guardar pra sempre a breguíssima Madonna cantando Like a Virgin de calcinha e sutiã para milhares de pessoas no Staples Center; a cafoníssima Lady Gaga usando um vestido de carne na televisão; a ultra simplória Vivienne Westwood fazendo roupa com resto de tecido xadrez e pintando a boca de preto; a mulher mais que deselegante, Cher, falando que adora correr riscos e ama, mais ainda, namorar! 


O fato é que, tirando as pressões e o medo, todo mundo se encanta de verdade com coisas absolutamente cafonas: uma descomunal prova de amor que mandou fazer o Taj Mahal; um exagero que são os jardins do Burle Marx; um delicioso devaneio artístico que é a amorfa, exagerada e coloridíssima Casa Batlló; pintar o “mau-gosto” de “paranóias ou mistificação[1]" como Anita Malfatti; tomar uma cerveja depois do trabalho; bater a mão na mesa amarela Skol e gritar truco. E no final, fica triste quando morre gente mais cafona ainda: que fala muito, inspira e transpira muito. 


O que fazer? “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas só existe”[2]. E gente que vive, gente que não tá aqui a passeio, vira acontecimento, vira boneca e vira texto de revista. Gente que vive como quer, no melhor que consegue, certamente é menos amarga – e, sabe-se, realizada: a alegria é a prova dos nove.[3]  


Há dois caminhos. Usar ou não usar vestido de carne. Cantar ou não cantar de calcinha e sutiã ou usar batom preto. Pintar a casa de marrom ou ter a audácia de fazer a Casa Pueblo. Tupi or not Tupi. Descer a mão ou falar truco devagarinho. Mas será que no final, lá pelos 102 anos, vai ser divertido? Sou muito novo para dizer. Mas a Alcione, “capaz de tudo para ser feliz”[4],  já decidiu: “Eu lá sou mulher de usar nude, porra!”[5]. E a Iris, determinou: mais é mais, menos é uma chatice (more is more, less is a bore!). Madonna, que diz que vive de futuro e vive sem parar, sintetiza: “muitas pessoas têm medo de dizer o que querem. É por isso que elas não conseguem o que querem". E vai além, porque tem coragem: "sou dura, ambiciosa e sei exatamente o que eu quero. Se isso faz de mim uma puta, ok!”[6].


Autoria: Pedro Henrique Guimarães

Revisão: André Rhinow e Enrico Romariz Recco


 

[1] LOBATO, Monteiro. A propósito da Exposição Malfatti. O Estado de S. Paulo. 1917. Disponível em Arquivo MAC USP: http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html

[2] WILDE, Oscar. A Alma do Homem Sob o Socialismo. Editor: Vega. Coleção: Passagens. 2002.

[3] ANDRADE, Oswald de, 1890-1954. Manifesto Antropófago e outros textos / Oswald de Andrade. Companhia das Letras, 2017.

[4] ALCIONE. A Loba. Disponível em: https://www.letras.com.br/alcione/loba











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