Tenho um hábito meio questionável de queimar a largada. Da bebida, do afeto e da raiva. É achar que as coisas estão no lugar certo antes de estarem. É me permitir ser confiante e confiar na minha intuição — que, infelizmente, não prevê todos os desdobramentos. É ter que lidar com o enjoo do cigarro, com os efeitos do álcool e da paixão, com a ressaca moral e com o arrependimento de não ter dado mais tempo ao tempo. Principalmente, é ter que lidar com o amargor das consequências e, no fim, as coisas ainda não acabarem do jeito que quero — o que acontece o tempo todo.
Nem por isso me arrependo. Acho que a gente tem mania de tentar economizar tudo, inclusive o que sente. Digo tentar porque o sentir tem vida própria e costuma ser bem teimoso. Admitir o sentimento e a irracionalidade por trás dele é mais evitável, ainda que por tempo limitado. É como desafiar o reflexo em um jogo de quem é mais esperto, de quem vai ser o primeiro a se dar por vencido, eu ou eu mesmo. Em algum momento da minha vida achei que eu pudesse conter meus exageros. Que, com a maturidade, os sentimentos seriam mais sóbrios. Ponderados. Justificados. Tomo conta de que eles nunca serão, pelo menos não para mim, e tento me conformar com a ideia de me apaixonar por meros conhecidos, sem explicação. Não me conformo. Outra mania nossa é a de racionalizar tudo, de dar nome a todos os bois. Na maioria das vezes, o sentir é puro em si mesmo. Não precisa de grandes explicações, muito menos de permissão para ser. Ele só é.
Às vezes, penso que os objetos do meu afeto podem se sentir muito importantes na minha vida. Podem me achar meio obcecada, ou até sem juízo (o que sou, um pouco). Mas tenho, para mim, que eles são secundários. Sou eu que sou capaz de me apaixonar e perder o encanto com a mesma rapidez. Sou eu que me permito sentir o desejo, a paixão e a dor. Sou eu que acredito fielmente que dor de amor passa e aceito ter que lidar com esse custo. Sou eu que me reergo e me atrevo a começar a sentir do zero. Sem garantias, cobranças ou exigências. Só o sentir. Pouco importa o objeto, ele muda o tempo todo. Tenho esse amor que é meu e só meu, que reparto sem abrir mão, porque posso dar todo o amor do mundo e ele ainda sobra.
Drummond fala que amor não se troca, não se conjuga e nem se ama, porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Por um tempo, acreditei que nunca seria feliz e forte em mim mesma. Mas como eu não seria, se o amor é meu? Custei ainda mais a entender o verso amor é estado de graça e com amor não se paga. A reciprocidade parecia elemento obrigatório para tudo fazer sentido. Mas o amor não foi feito para fazer sentido e talvez essa seja a sua graça. Ainda acho que merecemos sim um pouquinho de troca, mesmo que sem amor, mas é ingênuo cogitar estar sempre na mesma página.
Recordo-me de um tempo em que meu problema era o atraso de sentir, de viver, de me arriscar. Lembro de ficar tanto tempo no mesmo lugar esperando as ótimas condições de temperatura e pressão para daí começar a correr. Lembro de sentir que o mundo estava girando rápido demais e eu, parada. Agora a dinâmica é outra. Às vezes dou um passo maior que a perna e tropeço. Quando isso acontece, tenho vontade de implorar para que o mundo pare de girar para que eu me levante. E, no meio desse rola que levo da vida, que não ousa parar de ser vida e de me deixar no chinelo, dou um jeito de retomar o equilíbrio — pelo menos por algum tempo.
Quem sabe algum dia eu mergulhe de cabeça em um romance arrebatador, ou me aconchegue num amor tranquilo. Quem sabe um dia ele acabe e seja dilacerador — nem por isso poderei dizer que não deu certo. Quem sabe, em uma dessas voltas que o mundo dá, eu tropece comigo e me apaixone por mim mesma. No fundo, acho que ela é o fruto do meu grande afeto. E por ela eu viveria essa e todas as outras vidas pecando pelo excesso. A verdade é que a vida nunca me retribui muito por ser contida e eu sempre vou preferir correr o risco de ser exagerada. Queimar a largada pode ser arriscado, mas, para mim, nunca é um ato inconsequente. Com as consequências eu lido do jeito que posso, desde que, no final, ainda haja esperança no sentir — e sempre há.
Autoria: Fernanda Abdo
Revisão: Luiza Parisi e André Rhinow
Imagem de capa: Pinterest
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