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PEDRO


Que peso carrega um nome? Poderia essa ser uma escolha definidora da personalidade do nomeado? Uma escolha sobre a qual não temos qualquer poder e que, às vezes, "combina muito com você", e outras, não. Nos últimos meses, Pedro está em todos os lugares. Seria esse o espírito de todos os homens bons? Pelo que tenho acompanhado, quem tem o privilégio de um Pedro não precisa de muito mais, sortudos aqueles que têm um desses para chamar de seu (para nós que somos dos pronomes possessivos). Numa madrugada de sábado, me acordou uma insônia de exemplos.


Tem o Pedro da Tati Bernardi. Esse Pedro é real, ele é o marido da Tati e ela o cita em vários episódios dos seus podcasts, que são três - Meu inconsciente coletivo, Calcinha larga e Quem lê tanta notícia?. Não satisfeita, ela também tem cinco livros publicados, dos quais eu só li um até o momento. Depois a louca sou eu é um livro que fala sobre ansiedade, e eu me deparei com ele no momento em que descobria que o meu coração não devia bater tão rápido toda vez que alguém me direcionasse uma pergunta, e que as chances de um carro me atropelar na esquina de casa são grandes, sim, mas isso não podia me impedir de chegar ao mercado. Coisa engraçada sobre esse livro foi que eu o li todo em voz alta, me apropriando da entonação e dando as minhas próprias ênfases, contando a história ao meu próprio Pedro, noite após noite. Enfim, recomendo fortemente a leitura. O livro é de um tom confessional, que Tati usa para fazer um relato autobiográfico recheado de pânico, atritos de relações românticas e familiares, além de uma proximidade peculiar com remédios tarja-preta. O que eu mais gostei da narrativa são os momentos em que ela descreve pensamentos ridiculamente específicos, e é como se estivessem dentro da minha cabeça - poupá-los-ei da curiosidade com um desses trechos:


“[...] Aos vinte anos viajei com um namorado para Ilhabela e ele estava realmente preocupado se no dia seguinte ‘ventaria mais ao norte’, ou algo parecido, para ele praticar kitesurf. ‘Olha bem pra minha cara’, eu queria dizer a ele. Eu estava preocupada se meus pais morreriam antes do Natal, mesmo ainda sendo eles muito jovens e saudáveis (e sendo ainda jovens e saudáveis até hoje). Estava preocupada se acordaria às quatro da manhã com um ataque intenso de pânico que inviabilizaria estar naquela pousada, namorar, tomar café, ter amigos, trabalhar, ser promovida, ser promovida de novo, ter um parto normal, ter mais um filho, ir passar o Natal na casa dos pais de um marido ‘x’, andar pelas ruas, fazer compras num supermercado, envelhecer na companhia de alguém, ter alguém próximo a mim no dia da minha morte, não sentir dor ao morrer, ter alguém que me amasse muito e com quem pudesse ficar muito à vontade para gemer de dor e talvez estar meio suja e talvez precisar de ajuda para ir ao banheiro no dia em que eu bem velhinha tivesse que morrer.”


Para os interessados por psicanálise, o podcast Meu inconsciente coletivo é uma coleção de orgasmos mentais. Nele, a Tati conversa com diferentes analistas sobre os seus problemas, dúvidas e inseguranças, tão comuns que é impossível não se identificar. Além dele, ela também faz o Calcinha larga, junto com a Camila Fremder e a Helen Ramos, e elas sempre convidam alguma mulher foda (ou o Chico Felitti) pra falar sobre amizade, sexo, família e maternidade. O trabalho mais recente da Tati é o Quem lê tanta notícia?, um podcast informativo sobre acontecimentos do Brasil e do mundo, que ela apresenta ao lado do professor Thiago Amparo e da psicanalista Vera Iaconelli, os três colunistas da Folha. Aliás, agora fez sentido a conversa sobre aspirações profissionais no uber às quatro da manhã, né? Colunista da Folha! Como? Ainda não sei, mas eu chego lá.


O Pedro da Tati não é nada do que ela sempre buscou nos seus namorados - homens misteriosos e angustiados, intelectuais fechados em si, ultrassensíveis. O Pedro da Tati joga videogame e é tão tranquilo que dormiu enquanto ela passava a noite agonizando com as contrações de um parto normal frustrado. Eles estão casados há oito anos.


Camila Fremder, Tati Bernardi e Helen Ramos recebem Natuza Nery na estreia da 5ª temporada do Calcinha Larga. Reprodução: @ahelenramos


Tem o Pedro da Mirela que, na verdade, é o Pedro da Natalia Timerman. Esse Pedro é um personagem, ele é o amor perdido do romance Copo vazio, no qual a escritora narra a história de uma mulher que busca entender o sumiço repentino, sem mais nem menos, desse homem por quem está apaixonada. O livro transita entre o antes e o depois da ausência de Pedro na rotina de Mirela, passando por todos aqueles detalhes do início de uma relação - do se apaixonar, do descobrir imperfeições, de uma intimidade que ainda não é - e faz isso de uma maneira tão ressentida que é como se o leitor estivesse na pele da Mirela. Passa com o mesmo cuidado também pelos estados de ânimo do término. A mensagem é tão dolorosa quanto é um alívio: ninguém se casa com o amor da vida.


Não nos casamos com a pessoa que nos desmonta, que conhecemos numa roda de samba e seguimos a compartilhar angústias universais num vocabulário comum, fingidamente particular. Aquela que admiramos por virtudes pouco práticas e que estranhamente se encaixa no retrato de um futuro muito rotineiro cujo querer não somos capazes de admitir no auge dos 20 anos. A companhia preferida para todos os assuntos, com o benefício do silêncio sossegado - tudo isso inerente ao futuro do pretérito, ao glorioso "e se". Mas é evidente que não pode acontecer, ou a fantasia cai por terra e nos deparamos com uma pessoa real, numa relação normal. E é por isso que o tempo ao lado dos grandes amores tem os dias contados, para que continuem sendo sempre esses grandes amores, além do céu e da terra e da nossa própria compreensão.


A Natália também é psiquiatra e psicoterapeuta, e tem um outro livro chamado Desterros: histórias de um hospital-prisão, que traz relatos da sua experiência enquanto psiquiatra no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo (CHSP), única casa de saúde do estado disponível para o atendimento de presidiários. Ah, e ela faz uma análise de Copo vazio num dos episódios do Meu Inconsciente Coletivo (o podcast da Tati, lá de cima).


O Pedro da Natália e da Mirela é outro homem tranquilo, tão livre de conflitos no texto que soa quase desinteressante - apesar disso, você se pergunta durante todo o livro por que raios o cara desapareceu do dia pra noite. Ele parece uma pessoa boa, ou só transmite uma sensação de paz, basicamente, não nos dá motivo para desgostá-lo, o que já é o bastante.


Tem também o Pedro do teatro, desse eu tenho várias referências. Umas três amigas minhas falam dele com um brilho nos olhos que eu só tenho quando falo de comida. O Pedro é diferente de todos os caras que eu conheço, juro, elas costumam dizer. Pelo que eu entendi, tem a ver com o fato dele escutar verdadeiramente as pessoas numa conversa, de ser inteligente e não se achar melhor que os outros, de não interromper quando uma das meninas está falando, coisas assim - parece muito raso, mas infelizmente essas são coisas raras mesmo. Enfim, esse Pedro eu meti aqui meio sem contexto, mas ele serve de brecha pra eu falar de teatro, e essa semana fiquei sabendo que o musical As Cangaceiras, Guerreiras do Sertão voltou aos palcos no dia 16/10. Eu assisti à peça com letra e textos de Newton Moreno em 2019, e fiquei maravilhada. O espetáculo é de uma tristeza e delicadeza profundas. A trama é inspirada nas mulheres que seguiam os bandos que atuavam contra a desigualdade social no Nordeste, e apesar da memória já não ajudar tanto, me lembro de chorar algumas vezes durante a apresentação, que também é recheada de cantos muito vivos e festivos - uma montanha russa de emoções - não foi sem razão que o espetáculo recebeu o prêmio APCA de melhor dramaturgia. Não que o Pedro tenha me recomendado ou postado um story sobre o retorno da peça que tanto gostei, só acho que combina com a imagem que eu inventei dele na minha cabeça, baseada na fixação dos outros.

As Cangaceiras, Guerreiras do Sertão. Reprodução: Teatro Tuca.


Tem o Pedro do Ruy, personagens do Javier Contreras no romance Crocodilo, vencedor do prêmio APCA de melhor romance em 2019. Na ficção, Ruy é o pai de um Pedro sensível, imaginativo e que se jogou do 11º andar do prédio em que morava. O enredo se desenrola ao longo dos sete dias que se seguem ao suicídio do jovem cineasta, durante os quais Ruy, um jornalista muito cético e cheio das próprias verdades, narra a busca por respostas do que teria motivado a decisão do filho. A jornada pela própria memória, pelas lembranças da infância de Pedro e do tornar-se pai, se misturam aos encontros com personagens que carregam pedaços do que o filho haveria se tornado - o melhor amigo, a namorada, o analista. O livro aborda o tabu de uma verdade não dita, da repercussão de uma ausência súbita e da carência de explicações. O nome do romance é uma referência ao animal favorito de Pedro, um crocodilo que o garoto passava horas observando no zoológico quando criança - um símbolo explorado no desenvolver da sua personalidade quando adulto, um artista angustiado e fechado em si mesmo. A pele do animal, à primeira vista fria e impermeável, é na realidade mais sensível que as pontas dos dedos dos humanos. A romantização do sofrimento como fonte de inspiração, que a esse ponto já me dá preguiça, também está presente; o livro é permeado pela narrativa do artista incompreendido e, talvez por isso, brilhante: aos 30 anos, Pedro é reconhecido internacionalmente pelos documentários que dirigiu. Eu perdi esse livro pouco antes do isolamento social começar e peço que, caso algum conhecido detenha o meu empréstimo, faça o favor de devolvê-lo.


Tem ainda o Pedro da bíblia, que meu amigo entendido do texto descreveu como um dos "top quatro apóstolos". O nome dele é citado 154 vezes no Novo Testamento, então o cara não foi pouco importante. Tem também o Peter Pan; em 2004, eu era muito nova para que o Jeremy Sumpter fosse a minha primeira paixão (mais tarde descobriremos que a idade não seria o único impeditivo), mas não podemos negar a sutileza com que ele contribuiu para o despertar sexual de uma geração de pré-adolescentes. E tem uns Pedros mais cotidianos, de histórias mais ou menos desconhecidas: colegas de classe, ex-namorados de amigas, eventualmente todos eles também servirão de inspiração para o que quer que seja, assim como o resto de nós.




Autora: Glendha Visani

Revisão: Júlia Rodrigues e João Vítor


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