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PELO FIM DO VIDRO FUMÊ



Amanhã chega nosso novo carro com vidro fumê. Não digo que não estou animado, muito menos que careço de qualquer tipo de ansiedade feliz. Afinal, devemos ao menos dar certo valor ao cheirinho de juventude - sinônima do “faça-se-a-vida”. No entanto, por outro lado, sou tomado em partes também por uma certa angústia. Um vazio que já sente saudades de tudo aquilo que sempre pertenceu a minha vida. Até mesmo daquilo que era ruim, e que fui aprendendo aos poucos a lidar, dosar e transformar em coisas boas: memórias do cotidiano.


Sem ele - essa película cuidadosamente fabricada em algum lugar e imposta no meu vidro -, sinto-me mais integrado, dentro da comunidade - do mundo - que agora compreendo o porquê de a tradição chamar de “ar livre”. Aquela sensação de respirar o mesmo ar que o lado de fora, de sentir o calor. Tinham momentos de desespero? Entrar, ficar desesperado com o mormaço e logo querer dar partida, com vidros abertos e o ventinho batendo? Tinham. Mas isso era bom, fazia parte - trazia muitos outros elementos. O universo era mais factível.


Era possível ver o Sol real. Nunca entendi o porquê das pessoas tanto o detestarem e fugirem dele. Não esteve sempre aqui? Alguns não até o tornaram deus? Ele brilhava de uma forma que eu mal conseguia olhá-lo. O banco da frente fazia bom uso do tapa-sol. Podia nos deixar cego: de não ver as maravilhas do redor. Mas creio que não as vejamos mais agora, de posse de nosso vidro fumê.


Tenho medo de não brilhar mais, pelo menos na mesma intensidade de antes. Corro o risco de estar doido e, num ato revolucionário, deixar os vidros abertos, assim poderei vê-lo cru, todo brilhante. Quem sabe até mesmo as fusões dos átomos de hidrogênio e as emissões de partículas gama que ocorrem a 150 milhões de quilômetros daqui. Nunca tentei. Se dizem que ocorrem, deve haver um jeito de ver. Certo é que não o fazem através de um luxuoso vidro fumê.


Falando nas caras coisas da vida, o que será que as pessoas do vidro fumê devem pensar? Que a beleza delas é diminuta em relação a beleza do carro e do vidro? “Sou fulano, tenho um carro com vidros tão fumês que anulo as disparidades entre ser e não ser cego, excetuando-se a audição. Com certeza ficam todos espantados com essa virilidade que associam a mim, mesmo nem sabendo que fazem essa associação. São os benefícios de entender os meandros e afinidades do inconsciente.”


A situação não é tão desesperadora, posso simplesmente abrir os vidros do carro. Mas dirão que eu correria o risco de ser assaltado, que eu deveria me proteger. E que proteção é essa? De quem e para quem? Gosto de acreditar que as pessoas têm mais medo de fora - de assaltos - do que delas. No entanto, infelizmente, creio, involuntariamente, que a proteção do vidro é mais mais eficaz em proteger elas de si próprias do que dos outros, pois dificulta o acesso. E eu procurando rostos de meninas bonitas para olhá-las e sorrir desengonçadamente através de um Ray-Ban que tende a elevar o meu charme. Essas pequenas coisas, se não impedidas, serão agora, ao menos, dificultadas.


Os problemas não param por aí. Já falei do ventinho, mas enfatizo que a coisa realmente vai longe. Lembro de meu pai dizendo: “Vou ligar o ar condicionado”. E então ele estendia seu braço esquerdo, segurava o abre-vidros e fazia movimentos circulares. Aquilo tomava-me por completo, enchia-me de boas lembranças. Não sabia se sorria da sua tentativa simples de marcar sua humorada presença ou de nossa simplicidade de se contentar com tão pouco. Lembrava de nossa simples condição social, mas que criou momentos com atmosferas que de alguma forma se perderão na paisagem vasta do tempo. Muitas vezes, gastamos muito tempo descrevendo o que aconteceu, e não como.


Sonoramente, também serei prejudicado. Seria óbvio dizer que agora escutarei menos o mundo, devido aos meus vidros escuros fechados. Mas creio que a privação ultrapasse essa camada. Agora, existirá um novo ritual de dirigir. Não mais entrarei no veículo e ligarei na rádio que, sim, tentará, sem sucesso, ocultar os sons de fora, mas que ao mesmo tempo me ajudará a ampliar cada vez mais meu gosto musical. Gosto muito de descobrir. É provável que vou me render ao Bluetooth: agora poderei, quando quiser, escutar sempre as mesmas músicas que conheci até a data da chegada do carro novo. Isso tudo culpa do vidro fumê. Pelo menos agora os CDs não ficarão engasgando toda vez que passarmos em lombadas. Se bem que, provavelmente, contribuiremos de maneira substancial para o lixo mundial ao ter que dar destino a parte dos CDs sem sentido.


Receio - vou atento e paciente. Não é minha a intenção, tentarei ao máximo evitá-la. Isolarei minha pessoa, igual os outros fazem, vivendo num mundo fechado em vidro fumês? Casa, carro, escritório, carro, casa? Ficarei trancado no interior de meu carro escuro e com o ar numa temperatura que melhor me apetece, eliminando toda a temperatura que o lado de lá está me obrigando a viver? Direi, então, que o mundo não está se aquecendo mais? Distanciarei minha pessoa dos ruídos e pessoas que passam do lado de lá? E dos mendigos que a mim recorrerem? Vidros fechados, não me veem, consciência limpa e “ufa”? Alguém me diga por favor que pelo menos é possível distinguir a cor das borboletas!


Receio - receio muito. O homem vai subindo nos degraus da vida e vai esquecendo, se individualizando. “Eu sou livre, eu sou o mundo”. Uma vida apenas em mim mesmo não é uma vida, é uma existência. Logo, indago-me: seria apenas o vidro fumê a causa disso tudo?


Enfim, eu gostava daqueles vidros inofensivos - sempre transparentes e nunca translúcidos. Dava para ver tudo: eu via, nós víamos, eles viam, me viam, nos viam. Tocava no vidro quentinho por conta do Sol quando estava frio.


De tudo, o que ficará: a mão pra fora, o vento empurrando, o ar fresquinho, os olhos calmamente fechados e um sorriso oculto em meus pensamentos.


Revisão: João Vitor Vedrano

Imagem de capa: Reprodução Minuto Seguros


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