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PERDOE-ME, EU PARTI



“Tentando crescer sem odiar o processo. Cansada de antecipar o pior, embora continue antecipando o pior.”

—Gone Girl, SZA


Mãe e pai, parti porque queria coisas maiores para a minha vida. O silêncio das ruas me enfastiava e a mesmice das pessoas me preocupava. Cansei de acordar, estudar, descansar, ler e dormir. Cansei de me contentar com pouco. Perdoem-me, eu parti, porque deixei a inquietude vencer. Sinto saudades.


Amigos, parti porque fiquei esgotada. O barulho da cidade me ensurdecia e a fumaça quente dos carros grudava em minha pele feito carrapicho e me atordoava. Cansei de acordar, correr, estudar, trabalhar e dormir. Cansei de fingir que daria conta de tudo. Perdoem-me, eu parti, porque deixei a fadiga vencer e passei a gostar demais dos fins de semana em casa. Sentirei saudades.


Amor, parti porque nunca te encontrei. O som das suas vozes me dava frio na barriga e os seus nomes me assombravam. Cansei de acordar, sonhar, viver, me decepcionar e dormir. Cansei de rir daquilo que nunca achei engraçado e de tentar agradar quem nunca gostou de mim. Perdoe-me, eu parti porque perdi a esperança em você. Gostaria de dizer que sinto saudades.


Irmãzinha, espero que você nunca parta como eu parti. Espero que acorde, seja feliz e durma. Espero que sua semelhança comigo não te decepcione da mesma maneira que decepcionei a mim mesma. Perdoe-me, eu parti, mas espero que você nunca parta ou mude. Espero que seu amor à vida seja tão grande quanto o meu por você.


Eu mesma, parti por motivos que você já conhece. A sua timidez súbita me decepcionava e o excesso de cuidado com as palavras me paralisava. Cansei de acordar, pensar, não falar e dormir. Cansei de querer tudo e nada ao mesmo tempo. Perdoe-me, eu parti, porque não sabia mais quem era você. Espero voltar a sentir alguma coisa algum dia.


Parti porque não sei como melhor nomear esse sentimento. Assim como o verbo partir no infinitivo, a mudança é infinita. Parece um desfortúnio terrível e melancólico, uma reclamação de uma alma arrependida. Mas não é. Cresço, logo parto. Como se uma parte de mim tivesse ido embora e a que restou não soubesse por que mereceu ficar. Ela tem medo e pede desculpas por continuar existindo.


Será que matei a versão mais bonita de mim ao longo do caminho e agora ficarei presa para sempre com a mais feia? Aquela que não lê nem escreve tanto quanto costumava e que não é mais tão reticente à vontade dos outros. Eu atingi o fundo do poço, pois uso uma nota fiscal de supermercado como marcador de páginas. Mamãe, venha me salvar. Eu imploro.


Gostaria que a menina que eu era, que partiu algumas vezes antes dessa, pudesse olhar para quem se tornou e dizer o que pensa. Espero desesperadamente que ela goste de mim, caso contrário todas as partidas terão sido em vão. Ela partiu, porque sempre foi arrogante e egoísta, de certa forma. Partiu, porque ninguém nunca a impediu. Graças a Deus. Partiu, porque sabia que todos estariam esperando-a quando voltasse. Graças a Deus.


Eu sou ela. Não acredito em Deus e partirei quantas vezes mais forem necessárias.


Autoria: Beatriz Nassar

Revisão: Anna Cecília Serrano e Laura Freitas

Imagem de capa: Pinterest


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