(Música para a leitura:
Silly Love Songs – Wings)
São Paulo. Dia 19 de agosto, de 2024. 8 horas da manhã.
Eu tenho um fascínio por aquilo que é escondido. Alguns chamariam de curiosidade, mas isso matou o gato e eu sou jovem demais pra morrer. Contudo, devo admitir que essa tal de curiosidade é algo muito interessante, te faz ver muitas coisas que normalmente não chamam a atenção e, no final, é exatamente isso que chama a maior atenção para elas. Deve ser essa a origem do meu hábito mais recorrente: eu ando por aí. Passo horas e horas caminhando pelas ruas de São Paulo tentando achar aquilo que nunca é achado, apenas presumido. E pra falar a verdade, não dá muito certo: boa parte do tempo são só prédios e prédios e prédios (e quem sabe às vezes uma pracinha). Mas nunca tudo está perdido. Vou contar um segredinho (que nem é tão segredo mais): eu amo falar de amor (jura, Enrico? Nem percebi). Apesar desse fato já ser amplamente admitido pela minha pessoa e meus textos, acho que nunca expliquei bem o motivo.
Começa mais um dia na grande SP, cheia de movimento e caos generalizado. Mas eu até chego a encontrar pequenos momentos de paz durante minha caminhada rotineira para a querida Fundação na Avenida Paulista. Admito que gosto de ficar olhando pela janela do ônibus, observando os edifícios monumentais, cada um com um estilo arquitetônico tão único, mas ainda assim capazes de se camuflarem com a selva de pedra. Mas o que eu mais gosto de fazer é dar um oizinho para o Chico Miranda. Ele sempre fica no mesmo lugar, todos os dias, esperando que notemos sua presença. Daí você me pergunta: “Mas quem é Chico Miranda??”, ora caro(a) leitor(a), eu estou falando da imponente estátua bem no final da Paulista, no seu cruzamento com a Consolação.
Foi uma surpresa para mim também, honestamente. Com algumas singelas árvores que a rodeiam, feita de uma pedra que eu nunca sei o nome, mas acho lindíssima, fica aquela estátua de Francisco de Miranda. Um militar venezuelano, precursor da independência da América espanhola. Único latino-americano com o nome inscrito no grande Arco do Triunfo em Paris. Chegou a se tornar o segundo presidente da Venezuela, antes de ser deposto e entregue aos espanhóis como prisioneiro. Muito depois, em 1978, o governo venezuelano doou a estátua para a prefeitura de São Paulo, que a colocou em um dos mais movimentados e destacados pontos da cidade: a Avenida Paulista, onde hoje ela se encontra, esquecida.
Então você chega até aqui e pensa: “ok legal, mas o que eu tenho com isso?” e bom, nada, mas esse não é o ponto principal. O importante é que a estátua está lá, assim como muitas outras coisas nessa cidade que muitos dizem monstruosa e desumana. A brutalidade de SP é aparente pra qualquer um que transita por seus corredores cinzas, com pessoas de mesma expressão que às vezes parecem corpos vazios seguindo uma programação robótica. É difícil ser um raio de sol em uma cidade como essa, que aparenta sugar toda alegria e energia vital, desde seus parques até suas baldeações do metrô.
Mas quero fazer uma genuína pergunta a você que está lendo: já parou para perceber tudo além disso ou só assume que seja impossível se viver em Sampa e ser feliz ao mesmo tempo? Cuidado, companheiro, a vida nem sempre é tão triste quanto parece.
Como tudo que é bom, a beleza se encontra no secreto e nos detalhes das coisas mais mundanas e aparentemente mórbidas. Às vezes, é necessário que forcemos um pouco a vista para encontrar, arriscar a nossa visão de um mundo morto para descobrir que tudo não passa de um enorme Efeito Mandela, no qual todos apenas acham que sabem exatamente o que estão vendo e viram as suas vidas inteiras. Daí você descobre que as flores também desabrocham em São Paulo. Daí você descobre que as pessoas ainda sorriem, mesmo sem o sol para iluminar sua expressão de alegria.
Daí você está sentado em um banco de praça e observa um pai e sua filha, brincando de tirar fotos. Ela, pequenina, tentando entender como tal máquina de ver desenho animado pode criar uma cópia do papai e ele, fazendo uma pose e confiando que ela não deixaria o celular cair no chão e se espatifar todo. Click! E ela correu para ele para que pudessem admirar a foto tirada e então, um abraço, com um calor sentido até por transeuntes que nada tinham haver com o que se passava ali naquela praça.
Daí você está voltando para sua casa depois de um dia cansativo de aulas e mais aulas, pensando em todas as técnicas diferentes que você terá que inventar para passar naquela prova. Você se encontra no meio do trânsito de seres humanos em um túnel do metrô, cada um tirando fotos da situação toda como explicação pela sua demora, um hábito bem regular nessa cidade que, por ser tão apressada, acaba se atrasando em meio ao caos. A escada rolante quebrou, a fila parou de andar. Mas bem na sua frente, você vê um buquê de flores tão lindas e radiantes, praticamente desabrochando de dentro de uma mochila, como um gesto de resistência por parte da Mãe Natureza. Isso te tira do meio do fim do mundo, como uma subida à superfície depois de um nado semi-infinito. Daí você sorri, mesmo que por um breve instante. Daí você percebe que ainda pode existir amor em SP. Daí você descobre que o pobre Chico Miranda, moldado em um bronze que nada reflete no meio de seu pequeno mundinho de árvores em plena Avenida Paulista, existe.
Sabe, para viver, é preciso sair um pouco da loucura avassaladora da vida rotineira, mas esse é um hábito por vezes esquecido por alguns nessa cidade, e essa é a parte de São Paulo que nunca me agradou. Desde que me conheço por gente, eu sou apaixonado nessa cidade, mas nunca consegui convencer os outros a vê-la como eu. Mas talvez esse seja o motivo: eu enxergo a São Paulo que está além dos prédios, fumaça, carros e o Tietê. Eu sempre foquei em uma cidade diferente, que hoje tem de se esconder por entre vielas e cantos de olhar. Minha raison d’être com esses textos sempre foi, então, trazer os outros a ver a vida de outra maneira, fazer os outros enxergarem para além de meras representações físicas e perceberem tudo que tem além delas. Eu sempre tentei ver o mundo dessa forma, e por isso para mim São Paulo é um lugar tão diferente, um lugar com esplendor e amor para dar e vender. Eu sempre vi (e quis que os outros vissem) São Paulo, e não SP.
Já não é de agora que escuto que eu sou vitrola de uma canção só, fazendo praticamente todos os meus textos de (suspiro) amor. Que clichê, Enrico. Talvez seja mesmo, mas só é clichê aquilo que repetem muito, e você realmente acha que “amor em SP” é o tema mais recorrente nessa cidade? Ficamos birutas de felicidade (se é que devíamos) de reclamar de trânsito na marginal, do clima que muda em um estalar de dedos ou de como o ar está sempre tão (cof-cof) ruim. Alguém que quebra o padrão e fala sobre um pouco de amor, na minha singela opinião, é muito mais do que necessário e eu fico feliz de cumprir esse papel. E se for reclamar, ei: foi você quem veio ler um texto com um título desses, só tem um culpado aqui…
Da próxima vez que passar pelo final da Avenida Paulista, dê um oi para o Chico por mim. Pode confiar, ele vai estar lá (afinal, se ele se levantar e sair andando, corra), mas mais importante, espero que se lembre do seu real significado: um grande revolucionário, guerreiro, e uma das razões pela qual ainda se pode dizer que existe amor em SP.
Nota do Autor: Fiquei tentado a colocar “Não Existe Amor em SP” do Crioulo como a música para leitura só de ironia, mas senti que a que escolhi se encaixa mais na mensagem final do texto. Mas cá entre nós? Vai escutar Crioulo também. E Racionais (quem pegou a referência, pegou).
______________________
Autoria: Enrico Romariz Recco
Revisão: Artur Santili e Ana Carolina Clauss
Imagem da capa: Acervo pessoal
Comments