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PRECISAMOS FALAR SOBRE O VESTIBULAR

No texto de hoje, o nosso redator, Carlos Roberto, traz uma discussão muito importante sobre o vestibular e os reflexos da sociedade desigual que ele traz.

Antes de começar a ler esse texto, preciso que você saiba de uma coisa: não vou falar nada de novo aqui. Nenhuma das ideias ou discussões deste texto são inéditas - muito pelo contrário, são questões discutidas há muito tempo e por muita gente. Neste momento, você pode estar se perguntando: por que então escrever ou ler um texto como esse?


A resposta é simples: porque o debate que vou trazer aqui não é compreendido em toda sua dimensão no ambiente da GV, onde a crença na meritocracia é quase tão inquestionável quanto na famosa - e, adiantando um pouco a conclusão desse texto, igualmente ineficiente - mão invisível do mercado[1]. Hoje, vou falar sobre vestibular e como, atualmente, sua forma de realização é permeada de problemas, desigualdades e contradições. Ao mesmo tempo em que algumas reformas e iniciativas na última década[2]democratizaram e ampliaram o acesso ao ensino superior[3]para setores sociais historicamente distantes deste, o vestibular ainda se constitui como um instrumento de avaliação caracterizado por uma seletividade extremamente elitista e desigual.


Nesse sentido, trago aqui dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2018[4]: enquanto somente 36% dos alunos egressos da rede pública de ensino ingressaram no ensino superior, esse número chega 79% quando tratamos dos alunos de escolas particulares - ou seja, mais que o dobro. Quando analisamos[1] os dados através do recorte de cor e classe social, observamos a permanência e intensidade da desigualdade no acesso ao ensino superior: enquanto 51,5% dos entrevistados brancos haviam ingressado no ensino superior, esse número cai para 33,4% quando relacionado a pretos e pardos. Quanto a classe social, 34% dos estudantes no ensino superior fazem parte da [2] parcela dos 20% da população com maior renda.


Um dos grandes problemas dessa situação é que ela gera expectativas desleais, principalmente sobre os estudantes da escola pública. O discurso que envolve o vestibular é permeado por uma narrativa meritocrática que parte do pressuposto de que todos os candidatos encontram-se em condições iguais de concorrência. Desse princípio, derivam falas como “estude enquanto eles dormem”;“é tudo questão de esforço”; “se você quiser o bastante você vai conseguir” e outras tantas comuns em cursinhos, escolas e até mesmo nos círculos familiares e de amizade.


Dessa pressão em diversos ambientes, derivada da crença no caráter exclusivamente meritocrático do vestibular, surge, como outra consequência, a romantização de comportamentos tóxicos e autodestrutivos, como a ingestão descontrolada de cafeína, energéticos e remédios que prometem aumentar a concentração e o rendimento. Tudo isso com o objetivo de ser aquela pessoa que passa em uma dezena de vestibulares diferentes em cursos concorridos - mas estuda 15 horas por dia, não possui uma vida social ativa e acaba afetando sua própria saúde física e mental de maneira extremamente agressiva.


A grande verdade é que o vestibular não é essa entidade imparcial e meritocrática que tanto se diz e seu resultado não possui capacidade pedagógica para avaliar conhecimento. Sendo otimista, ele nada mais é que um reflexo da capacidade do candidato em se adaptar a uma prova longa e exaustiva. Sendo realista, os resultados gerais representam as condições socioculturais dos vestibulandos - afinal, é uma consequência lógica que, quanto melhor o status social de alguém, melhor será sua qualidade de preparação e maiores serão suas oportunidades.


Claro que isso não significa que pessoas pertencentes às classes sociais mais vulneráveis não terão chances de sucesso ou que não se deve enaltecer as conquistas de quem conseguiu chegar à faculdade depois de um grande esforço, mas é preciso ter noção que, no atual sistema, esses indivíduos são exceções, e não a regra. E o fator responsável por isso não está na falta de capacidade ou de esforço de estudantes de escolas públicas, como tenta nos fazer crer o discurso meritocrático. Nesse sentido, Pierre Bordieu, importante sociólogo francês, estabelece uma análise sobre a interdependência entre origem social e desempenho escolar, que pode ser facilmente transportada para o universo do vestibular:


“(...) cada indivíduo possui uma bagagem cultural diferenciada, que pode ser facilitadora do sucesso escolar. Essa bagagem é formada por determinados componentes objetivos [externos ao indivíduo] e, também, por componentes da própria subjetividade. O capital econômico, traduzido em termos de bens e serviços a que ele possibilita o acesso; o capital social, tomado como o conjunto de relacionamentos sociais de prestígio mantidos pela família e o capital cultural institucionalizado, que engloba basicamente os títulos escolares, fazem parte da categoria objetiva. Já a categoria subjetiva é formada, sobretudo, pelo capital cultural na sua forma incorporada. Nesse estado, porém, o capital cultural não é transmitido instantaneamente, requer tempo e dedicação até que se torne “parte integrante da ‘pessoa’, um habitus”[5]


Em conclusão, quando falamos sobre o resultado de determinado vestibular não estamos falando sobre o quanto os estudantes aprovados são mais capazes ou se esforçaram mais do que aqueles que não. Estamos, nesse caso, diante de determinados indivíduos com privilégios socioeconômicos que os permitiram obter um melhor desempenho, seja por melhores condições financeiras, familiares ou culturais (que, geralmente, estão associadas). A fragilidade da capacidade avaliativa desse sistema acaba por alimentar o desenvolvimentos de diversos transtornos de dimensão física e psicológica[6]gerados por uma falsa expectativa em sua neutralidade e no mérito como determinante único do sucesso.


[1] Esse, no entanto, é assunto que vai ter que ficar para um próximo texto.


[2] Por exemplo, a reestruturação do Enem em 2009, que consolidou e ampliou o acesso a ferramentas como o SISU, PROUNI e FIES, a expansão de IES públicas e a implantação de políticas de cotas.


[3] O número de matrículas em Instituições de Ensino Superior (públicas e privadas), entre 2000 e 2013, teve um crescimento de 129% e a quantidade de IES públicas aumentou em 71% de acordo com dados do Mapa da Educação de 2015. Estudo disponível em:http://convergenciacom.net/pdf/mapa-ensino-superior-brasil-2015.pdf Acesso em:11/11/2019.

[4]IBGE. Síntese de Indicadores Sociais de 2018, p. 34. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c2542b0.pdf Acesso em: 11/11/2018.

[5] BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos de educação. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. In: BARROS, A.S.X.

Vestibular e Enem: um debate contemporâneo. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.22, n. 85, p. 1057-1090, out./dez. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ensaio/v22n85/v22n85a09.pdf Acesso em: 11/11/2019.

[6]Como crises de ansiedade, estresse e insegurança durante o ano de provas. Ver: FREITAS, A.

Como a pressão pré-vestibular afeta estudantes, fisicamente e psicologicamente. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/03/Como-a-press%C3%A3o-pr%C3%A9-vestibular-afeta-estudantes-fisicamente-e-psicologicamente.


Vale à pena lembrar, também, que apesar de afetar muito mais intensa e claramente as classes mais pobres, não se limita a elas. É comum observar problemas semelhantes - ainda que em um nível menor e crucial - mesmo em pessoas com melhores condições sociais.

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