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PUREZA


Durante o mês de julho, perdi meu avô. Não que seja uma notícia triste, porque, mais do que triste, é natural. Acho que não falarei da morte de imediato, mas sim do meu avô. É um texto simples, se me perdoam a metalinguagem.

É engraçado pensar na ansiedade que tenho e tive durante grande parte da minha vida, e nas aspirações e na competitividade que me presentearam com auto-julgamento, com frustrações e com medos diversos. Engraçado que, para mim, ainda é difícil cair no sono pelo tanto em que penso sobre o que foi, o que poderia ter sido, o que será, o que pode vir a ser. E me comparo e almejo e desejo e preciso. Para meu avô, isso não era uma realidade.

Meu avô era capaz de sorrir genuinamente, como jamais eu vi alguém sorrir. Quando pequeno, eu não entendia como ele amava com tamanha facilidade. Crescemos longe, em outra cidade, e, sempre que o víamos, ele fazia questão de dizer, com lágrimas nos olhos, do amor que sentia por nós, e que éramos presentes de Deus. “Jesus te ama”, ele dizia. Penso que, se Deus existe, era ele o amor de que meu avô nos falava. A beleza na inocência em seus olhos, a calma, o conforto em saber que nada era realmente preocupante, porque estávamos ali com ele.

A visão de meu avô para o mundo era pura e clara. Vivia em um lugar quente e pacato, e tinha uma rotina bem delimitada. Era mais feliz do que eu jamais fui, porque, frente aos seus olhos, não havia dúvida, medo, ponderação, ou pensamento improdutivo. Meu avô tinha nada menos do que amor pelas pessoas, animais, natureza, ou qualquer outra coisa. Chorava de amor, apenas, nunca de raiva. Contava, feliz, histórias antigas de momentos de paz e alegria que vivera, de bons amigos que tinha, de sensações de completude e resiliência de outrora. Desacostumados, os convidados observavam e ouviam sem interesse, por educação. Não poderiam compreender algo tão fora de suas realidades.

Quando o visitei no cemitério, o dia estava bonito. As flores sobre seu túmulo eram lindas e diversas, esparsas sobre a pedra lisa. Rajadas de vento amaciavam minha pele contra as altas temperaturas, e pássaros manobravam suas rotas acima de nós. Chorei por um momento, junto ao meu pai, que também chorava. Meus olhos opacos pelas lágrimas tentavam compreender o porquê de meu avô ter vivido como viveu, o porquê de sua visão sobre o mundo ser como era e o porquê de sua partida. Novamente, eu fazia o que ele não poderia recomendar: pensava demais e não me deixava sentir. Me flagrei rapidamente e olhei para cima. Acho que entendi, talvez, por um segundo, um pouco da sabedoria de um homem que não muito estudou, não possuía grandes fortunas, mas que me deu de herança uma riqueza insubstituível.

Olhando para trás, vejo meus próprios traumas, inimizades, sofrimento e qualquer outra coisa ruim. E tudo agora me parece distante, de repente, porque o passado existe apenas em minha mente, salvo prova qualquer em contrário. Venho a crer, finalmente, que coisas ruins existem apenas quando as admitimos no mundo. Olhando uma flor, podemos materializar o pensamento de que, em certo tempo, ela estará morta, ou no fato de que ela é consideravelmente frágil, e que muitas coisas seriam capazes de, rapidamente, destruí-la. Nenhuma dessas ideias é útil, porque as milhares de flores a nascer e a brilhar sob o sol não precisam de nenhuma proteção exterior. Sua natureza já conhece o destino do apodrecimento, e a questão é que não há nada para enfrentar. As flores são lindas, cheirosas, atraentes, complexas. O que cabe a nós, apenas, é a difícil atividade de apreciá-las.

Agora, finalmente, posso falar da morte. Posso dizer que é previsível e natural, como o respirar dos seres. Posso afirmá-la, mas não duvidar. Posso emplacar a filosofia de que as pegadas que deixamos no mundo, pela simples qualidade de existência que têm, mudam a integridade e o curso do universo, e que, portanto, somos imortais. Mas discordo, acho que somos mortais, ao menos nessa realidade, e não sei se existe algo além, e tampouco acho que, caso não exista, tenhamos que lamentar. Novamente, a questão é o ponto de vista, e o quanto realmente fazemos questão de algo. As coisas não são bonitas e prazerosas pela sua infinitude. Talvez, seja exatamente o contrário. Talvez, isso não tenha a menor importância.

Para o leitor, tudo isso pode ser picuinha, e talvez seja. Para mim, é o retrato de uma experiência que um velho homem me trouxe, com uma sabedoria de mil anos, ou de algumas semanas. Após ter me deixado, meu avô me ensinou a ser feliz.


Autor: Rodrigo Ferreira

Revisão: Gabriela Veit Barreto, Laura Freitas e Anna Cecília Serrano

Imagem de capa: MoMA, de Tarsila do Amaral


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