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QUANDO A DITADURA BATE À SUA PORTA, NUNCA MAIS HÁ PAZ

No artigo de hoje, nossa redatora Laura Mastroianni Kirsztajn utiliza-se de um relato familiar para apresentar uma reflexão a respeito da perversidade da Ditadura Militar e como os efeitos da censura, tortura e violência perduram sempre na vida e memória de uma família.


Existem várias formas de se tomar conhecimento sobre a Ditadura Militar Brasileira: por meio dos livros de história, nas aulas da escola, em documentários, filmes e séries, notícias de jornal, noticiário da televisão... Mas, para muitos, a ditadura é mais que um evento histórico: seu veneno corre no próprio sangue. Essa é a história da minha relação com a Ditadura Militar, que se iniciou desde que comecei a entender o mundo.


Nunca aprendi que a polícia era sinônimo de segurança e confiança. Desde bebê, acompanhada de minha mãe ou avós, ver essa figura era um sinal de que devíamos nos afastar, cruzar a rua, não olhar nos olhos e seguir em frente. Até ter idade suficiente para fazer perguntas, isso parecia um fato normal. Seu símbolo sempre foi a taquicardia, o medo e as mãos suadas. Depois isso ganharia o nome de estresse pós-traumático.


Certo dia, vendo alguma notícia sobre a ditadura, comentei com a minha mãe sobre Vladimir Herzog, uma das vítimas das execuções e torturas feitas pelos militares. Foi aí que ela me contou o que aconteceu com o seu tio. Tudo passou a fazer sentido, e eu entendi por que aquilo não era apenas um fato histórico para nós. A ditadura bateu à nossa porta, vigiou os nossos passos e ceifou parte de cada um.


Envoltos e engajados na política, nossa família não era favorável ao regime, cada um expressando essa insatisfação de formas diferentes. Um de nós era apenas um universitário de esquerda que namorava uma mulher de esquerda e, existindo como tal, foi alvo da repressão.


Desde então, não havia mais noites calmas, pois até o silêncio era suspeita, enquanto o barulho era certeza. Eles queriam levar o nosso tio e, para isso, foram atrás de todos, crianças ou idosos.

Quando se é interrogado, não existe a sua verdade, existe a verdade dos que perguntam, e cabe a você a confirmação, mesmo que pela mentira. Não há incerteza quando eles sabem que você não é um deles.


A tortura pode vir das mais diversas maneiras, e os militares brasileiros tornaram a oposição um verdadeiro laboratório do terror. Várias técnicas foram testadas e seriam ensinadas para militares do Reino Unido e Estados Unidos; o primeiro país iria utilizá-las na Irlanda do Norte, enquanto o segundo as utilizou em suas prisões no Iraque, como a de Abu Ghraib, e na Guerra do Vietnam. Entre as torturas ensinadas pelos britânicos aos brasileiros (e que viriam a ser aplicadas em presos da Irlanda do Norte), as cinco técnicas de Ulster foram as mais famosas: 1. obrigar o detido a permanecer em pé contra a parede, com os braços estendidos; 2. usar capuz o tempo todo, exceto quando interrogado ou sozinho na cela; 3. privação de sono; 4. dieta de pão e água; 5. uso de ruídos sonoros monótonos e contínuos em altura calculada para impedir qualquer tipo de comunicação. O que se viu de valioso nas técnicas anglicanas era o fato de serem uma tortura psicológica, que não deixa muitos vestígios ou marcas físicas. É a tortura que só enxerga quem a viveu, o que facilita o acobertamento dos crimes da ditadura.


Nas aulas e estudos sobre Direitos Humanos, muito aprendi sobre os efeitos da tortura física e psicológica naqueles que a sofreram. Apesar de ele ter sido a vítima direta da tortura e do aprisionamento, a sua história é a que menos conheço, pois, desde que encontrou a liberdade física, a luta pela liberdade mental já havia sido esgotada.


Mesmo assim, consigo visualizar como a tortura se alastra por toda uma família, atravessando o indivíduo. Para alguns, lidar com essa dor significa um longo pacto de silêncio, porque reviver dói demais. Não é preciso falar aquilo que se sente eternamente. Para outros, pronunciar o que aconteceu vem carregado de amargura, e a boca fecha rapidamente para controlar as lágrimas.


Da criança ao idoso, a ditadura não parou de bater à nossa porta depois de 1985, não importa o quão forte fosse a tranca e a fechadura. Quando a ditadura marca a mente de uma família, a dor não cicatriza: vira luta.



Referências:


Ghosts of Abu Ghraib – 1:09:26 https://www.youtube.com/watch?v=1ucVvqOVwZI


Segredos de Estado: O governo Britânico e a Tortura no Brasil (1969-1976)", de João Roberto Martins Filho: How the UK taught Brazil's dictators interrogation techniques https://www.bbc.com/news/magazine-27625540

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