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QUEM ASSUME QUE MUDOU?



Eu nunca gostei de cebolas. Tenho um paladar infantil que sempre me fez manter uma distância necessária de cebolas, o essencial para não sentir ânsia ou lágrimas escorrendo. Mas, ao me soltar na vida em São Paulo, me deparei com muitas cebolas no meu cotidiano. Bem ou mal cortadas, elas estavam nas refeições de cada boteco insalubre em que eu escolhia almoçar. E eu comecei a me acostumar.


Um dia desses, quis ligar para minha mãe e contar: “mãe, você não vai acreditar! Hoje eu escolhi comer bife acebolado porque percebi que a cebola traz um tempero a mais; e não é ruim. Talvez eu queira temperar minha comida com mais cebolas”. Mas eu não tive coragem. Senti que ela não entenderia a mudança ou buscaria uma origem para essede um comportamento que nem eu sei. Talvez eu não quisesse assumir: passei a gostar do que nunca quis experimentar.


As cebolas me fizeram pensar que eu tenho mudado alguns hábitos sentimentais e alimentares. Até o ano passado, eu nunca tinha comido peixe ou comida japonesa, porém um dia eu resolvi tentar. Agora, um desses dias, eu pedi hot roll por vontade própria. Eu, que adorava banhos fervendo, passei a esfriar a cabeça em uma água mais fria que São Paulo.


É que o tempo passa pela gente enquanto nós passamos por ele. Tudo está em movimento, inclusive os costumes mais fixos aos quais minha ansiedade tenta se apegar. A origem dos meus novos hábitos? Não sei… talvez, algumas das centenas de pessoas com as quais eu compartilhei fragmentos do cotidiano nos últimos semestres. Talvez, alguns encontros, bares e reflexões que só a capital — vivida na flor da idade — me traria. Talvez, as línguas com as quais falei, beijei ou as quais aprendi. Talvez, apenas eu mesma.


Mas eu não liguei para minha mãe. Por algum motivo essa nova personalidade não envolve contar cada passo da sua evolução para ela. Ou eu tenho medo de assumir que as coisas mudaram porque, nessas mudanças, costumes podem ter ficado para trás; hábitos que eu negligenciei mais do que as provas parciais da faculdade. Talvez eu não queira que as cebolas façam parte do meu presente, por mais que elas tragam um tempero que hoje em dia eu ache indispensável.


Eu gostava da segurança que o passado me trazia. Mas ela passou. E, por algum motivo, faz três semestres que eu escolho me desapegar de tudo que me traria uma sensação de controle. Dentro de mim, uma voz tamanha, resolve pedir liberdade. Mas há um lado careta e covarde, um lado que não quer incluir cebolas ou comida japonesa na sua lista de compras. Enquanto meu corpo pede, grita, suplica: mudamos.


Assumir que algo mudou é um ato de coragem. Seja ligando para quem representava tudo ou incluindo uma mudança — já indispensável — no seu cotidiano, aceitar que algo mudou torna os processos mais leves e nos permite evoluir a partir do novo ponto de partida. Processos, esses, constantes e inevitáveis. Talvez, se eu aceitasse as cebolas, descobriria novas receitas ou até arriscaria os famosos ‘onion rings’. E se eu gostasse?


São tantos pensamentos por causa de um bife acebolado em um prato feito de 20 reais. Anos atrás, eu jamais arriscaria sentar em um boteco assim: aqui, minha cabeça fala mais alto. É, Cazuza, peço coragem. Ligo para minha mãe e conto o que ela já sabia, talvez meu cotidiano tenha sido ocupado por mais cebolas e menos ligações. Eis que ela me conforta ao responder: o tempo não para.


Autoria: Ana Cristina R. Henrique

Revisão: Laura Freita, Artur Santilli e Sofia Nishioka

Imagem de capa: foto própria


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