“Ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas” – Clarice Lispector
Desde que comecei a publicar textos para a Gazeta tenho vontade de escrever sobre a Clarice Lispector, mas nunca tive coragem. Como fazer jus à tamanha mulher? Como escrever algo que ainda não tenha sido dito sobre uma personalidade tão marcante para a literatura brasileira? Até agora não tenho as respostas para essas perguntas, tudo o que tenho é a vontade de escrever esse texto, então fiquem aqui com a minha tentativa.
Clarice nasceu em 1920, na cidade ucraniana de Tchetchelnik. Era filha de um casal de origem judaica, que veio para o Brasil em busca de refúgio durante a Guerra Civil Russa, quando Clarice tinha apenas dois anos de idade. Uma observação interessante para se fazer aqui é que a escritora, apesar de ter nascido na Ucrânia, nunca se considerou realmente como ucraniana, chegando a afirmar que “naquela terra eu literalmente nunca pisei, fui carregada de colo” e que sua verdadeira pátria era o Brasil.
Retrato de família. Clarice aparece ainda pequena ao lado de seus pais, Pedro e Marieta, e de suas irmãs, Tania e Elisa. Foto retirada do Acervo O Globo, divulgada em 2012.
Após a chegada da família no país tropical, construíram uma casa em Maceió, onde já estava estabelecida a residência de uma das tias de Clarice. Nesse período, o pai da família tomou a iniciativa de ‘abrasileirar’ o nome dos integrantes, fazendo então com que Chaya Pinkhasovna Lispector fosse rebatizada de Clarice. Alguns anos mais tarde a família se mudou para Recife, onde a jovem aprendeu a ler e a escrever ainda muito nova, e logo já se engajou na produção de contos. Quando tinha apenas 9 anos, Clarice perdeu a mãe para complicações advindas de uma Sífilis que, segundo relatos, foi resultado de um estupro sofrido durante a Guerra. Assuntos relacionados a essa perda, sentimentos de culpa, lamentações e até mesmo alguns reflexos de esperança são aspectos marcantes em várias das obras de Clarice.
Aos 14 anos de idade, Clarice se mudou para o Bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde frequentou o colégio Silvio Leite e, em 1939, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tal fato causou muita estranheza na época, tendo em vista que mulheres não costumavam frequentar faculdades, muito menos a escola de direito, sendo ela uma de apenas três mulheres que integravam a turma. Em entrevista, Clarice afirmou que tinha como objetivo “estudar advocacia para reformar as penitenciárias”.
Carteira de Estudante de Clarice Lispector do ano de 1943. Foto retirada do Acervo do Instituto Moreira Salles.
Aos poucos, o interesse que Clarice possuía na advocacia se tornou uma paixão pela escrita e pelo jornalismo, resultando na publicação de seu primeiro conto, Triunfo, na revista Pan no ano de 1940. Em uma entrevista fornecida à TV Cultura em 1977, ao ser perguntada sobre sua produção durante a adolescência, a escritora define seus textos como algo “caótico, intenso e inteiramente fora da realidade” e conta que costumava bater nas portas das revistas com sua “timidez ousada” perguntando se tinham interesse em publicar seus contos. Foi logo em 1943 que publicou o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, que foi recebido com muitos elogios pelo meio literário e ganhou o prêmio Graça Aranha de melhor romance do ano.
Na faculdade, Clarice conheceu o diplomata Maury Gurgel Valente, que viria a se tornar seu marido em 1943, mesmo ano no qual conseguiu finalmente completar o processo de naturalização. Apesar da relação não ser das mais felizes, a alta posição econômica e social do marido, juntamente com as diversas viagens que realizou como esposa do diplomata, impactaram diretamente a produção de diversas obras da escritora.
Clarice e seu marido Maury G. Valente. Foto retirada do Acervo do Instituto Moreira Salles.
Após o nascimento de seus dois filhos, Clarice se separou do marido e voltou para o Rio de Janeiro em 1959, visando focar em sua carreira como escritora e na criação de seus filhos. Dois anos depois publica A Maçã no Escuro, seguido por uma das maiores obras de sua carreira, A Paixão segundo G.H, de 1964.
Em 1975, a escritora participou do Congresso Mundial de Bruxaria na Colômbia, onde apresentou seu conto O Ovo e a Galinha, que fez muito sucesso entre as outras participantes. Tal acontecimento adicionou uma certa áurea de misticidade à personalidade de Clarice, que foi recebida novamente no Brasil com textos de jornalistas descrevendo aparições falaciosas da escritora utilizando amuletos e roupas pretas, fazendo com que a escritora ganhasse o título de “a grande bruxa da literatura brasileira”.
Clarice e sua máquina de escrever. Foto de Claudia Andujar retirada do Acervo O Globo.
Dois anos depois, em 1977, publica A Hora da Estrela, considerado por muitos como uma das maiores obras da escritora. Foi nesse mesmo ano que Clarice foi diagnosticada com câncer no ovário, falecendo em dezembro, um dia antes do seu aniversário de 57 anos.
Mesmo com uma carreira brilhante, Clarice nunca se assumiu como escritora. Se descrevia como uma grande amadora, pois só escrevia quando tinha vontade. No fundo acho que entendo o que ela quis dizer com isso. Clarice, diferente dos escritores, não escreve com palavras sólidas, mas sim com sentimentos derramados. Buscar o completo entendimento de suas obras apenas com a leitura é, para mim, impossível, pois é só no momento que ocorre o encontro das emoções da autora com as minhas que a compreendo, e nesse processo acabo entendendo a mim mesma. Clarice não se lê com os olhos, se lê com a alma, e é por isso que ela estava certa quando afirmou não ser uma escritora, pois é certamente muito mais que isso.
Nota de agradecimento:
Aproveito esse espaço para agradecer à Clarice, pois foi em uma exposição sobre ela, organizada pelo IMS em 2021, onde encontrei pela primeira vez algumas das pessoas mais incríveis que já tive o prazer de conhecer. Foi após essa exposição que demos início a um clube do livro cuja primeira leitura foi A Paixão Segundo G.H. Infelizmente, o clube do livro não durou muito, mas a nossa amizade sim.
Autoria: Victorya Pimentel
Revisão: Enrico Recco, Luiza Parisi e André Rhinow
Imagem de capa: Foto de Claudia Andujar retirada do Acervo O Globo
Bibliografia:
Biografia de Clarice Lispector. eBiografia. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/clarice_lispector/>.
FIDELIZARTE. Clarice Lispector. Portal da Literatura. Disponível em: <https://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=1523>. Acesso em: 5 ago. 2023.
Casa de Clarice Lispector. Brasil Fiscaliza. Disponível em: <https://www.brasilfiscaliza.com.br/ir/casa-de-clarice-lispector/>. Acesso em: 5 ago. 2023.
Mais de 40 anos após morte, Clarice Lispector desperta mais questões do que quando viva. BBC News Brasil, Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-42313869>. Acesso em: 5 ago. 2023.
Panorama com Clarice Lispector. www.youtube.com. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU>.
GLOBO, Acervo-Jornal O. Clarice Lispector, escritora. Acervo. Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/clarice-lispector-escritora-22124221>. Acesso em: 5 ago. 2023.
Centenário de Clarice Lispector: Reflexões sobre crime, punição e ...- Migalhas. www.migalhas.com.br. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/337213/centenario-de-clarice-lispector--reflexoes-sobre-crime--punicao-e-justica>.
Ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas” Qual obra foi publicada essa frase? O que parece é que não é dela esta frase.