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QUEM PAGA A CONTA?

No texto de hoje, nosso redator Carlos Roberto disserta sobre o Auxílio Emergencial e todas as questões problemáticas que permeiam este benefício federal, especialmente agravadas pela negligência do Governo em uma época tão crítica como esta que vivemos. Venha ler para saber mais.

No dia 30 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde declarou estado de emergência global em razão do coronavírus, momento no qual já havia sido registrada sua presença em outros 18 países¹. Enquanto isso, no Brasil, o primeiro caso a surgir foi confirmado apenas no dia 26 de fevereiro², quase um mês depois. Dezessete dias depois, em 11 de março, foi declarado oficialmente o estado de pandemia e, nesse momento, o Brasil possuía 52 casos confirmados³.


Naquele momento, outros países já estavam lidando com cenários muito mais avançados em razão da contaminação pelo vírus: a China, por exemplo, já registrava 3.158 mortos, enquanto a Itália anunciava 827. O número total de pessoas infectadas no mundo inteiro era de 117 mil pessoas. Essa situação, por mais terrível e assustadora que fosse, garantia ao Brasil uma vantagem: o tempo.


Pudemos olhar e entender quais as medidas com maior eficiência no combate e prevenção ao coronavírus.. Tínhamos como prever o que aconteceria aqui e quais as coisas não deveríamos fazer para que as piores hipóteses se concretizasse. Tivemos tempo para planejar e construir estratégias que poderiam ter evitado muitas das 22.746 mortes que foram registradas até o momento em que esse texto foi escrito. Entretanto, não foi isso que aconteceu. O Governo Federal, em contradição com todas as recomendações da OMS, da comunidade científica e da própria realidade que foi observada nos outros locais do mundo, resolveu adotar uma postura negacionista e negligente.


Um dos maiores e principais argumentos para isso foi dizer que uma rígida política de isolamento social - a maior e mais eficaz arma contra o coronavírus até agora - seria prejudicial à economia do país. Bolsonaro se alicerçou em discursos que sustentavam haver uma contradição fundamental entre o combate ao vírus e a manutenção da economia . Nesse sentido, foi dito que aqueles que não morressem de coronavírus, morreriam de fome ou se suicidariam por problemas financeiros, com um grande enfoque e direcionamento às classes sociais mais baixas.


No entanto, o que se observa na realidade é algo diferente. Não há um conflito necessário ou inevitável entre evitar que as pessoas morram de fome ou de coronavírus. Não é preciso escolher entre salvar vidas ou a economia Ambas as coisas podem ser, em última instância, complementares - como demonstram estudos evidenciando que, no longo prazo, adotar o isolamento social é a política mais benéfica para reduzir os impactos negativos na economia.


Mas essa discussão econômica, em cima de números e projeções futuras, não é o objeto central deste texto. Pretendo aqui focar em uma questão bem mais específica: o caso concreto de pessoas físicas e microempresários brasileiros que esperam o Auxílio Emergencial ou o Benefício Emergencial. Tendo sido consultado por amigos ou mesmo na minha atuação como voluntário no Movimenta GV¹⁰, já perdi as contas de quantos casos relacionados aos mais variados problemas em relação ao benefício - desde dificuldades no cadastramento, negativas injustificadas, incapacidade de recorrer às decisões ou até mesmo no recebimento e acesso ao aplicativo.


A grande primeira questão problemática é, justamente, a demora e falta de responsividade do Governo Federal em relação ao Auxílio Emergencial. Depois de discussões sobre valores e público atingido - nas quais vale lembrar, inclusive, que a intenção inicial do Executivo era de que o valor pago seria de R$ 200, 00 - o Senado finalmente aprovou e encaminhou o projeto de lei do Auxílio, no dia 30 de março, para a sanção presidencial.


Esta, por sua vez, só ocorreu três dias depois, no dia 2 de abril, mais de um mês depois da declaração oficial do estado de pandemia e, ainda, não sem ter indicada uma data para o início do pagamento¹¹ - que somente começou a ocorrer no dia 9 de abril e de forma gradual. Desde então, a segunda parcela só foi liberada, após atrasos e recuos do governo quanto a informações cedidas, na semana do dia 18 de maio.


Ora, para um governo que se diz preocupado com “pessoas morrendo de fome” e com a recessão econômica, e que teve, como visto, tempo de sobra para realizar um planejamento eficiente para a análise e pagamento, a disposição para aprovar, creditar e possibilitar o uso do benefício demonstra-se extremamente ineficiente, já que até mesmo as pessoas que conseguiram ser beneficiadas relatam não conseguir utilizar o dinheiro por conta de falhas no aplicativo da Caixa destinado à movimentação do Auxílio.


No entanto, ao se falar dessa forma abstrata pode ser que não se tenha a dimensão exata do problema com o qual estamos lidando. Por isso, pedi para algumas das pessoas com quem conversei para trazer o relato delas a esse texto.


A primeira delas é Adriana Aparecida Inácio, que teve seu auxílio negado sob a justificativa de que seu núcleo familiar já teria atingido o limite de pessoas passíveis de receber o auxílio. No entanto, ela mora apenas com seu filho que, de fato, conseguiu receber, mas apenas isso não a excluiria dos critérios de recebimento - que estabelecem o limite de 2 pessoas por núcleo familiar. No aplicativo do cadastramento não havia opção de recorrer contra a negativa (em contradição ao anúncio da Caixa de que havia incluído essa ferramenta) e, ao tentar recorrer ao número 111 - número criado para atender dúvidas e problemas relacionados ao auxílio - ela não conseguiu nenhuma informação, apenas lhe foi dito que precisaria realizar o cadastro pelo aplicativo. Até agora, a situação continua sem resposta.


Mas o problema não para por aí. São diferentes perfis de pessoas que estão sendo afetadas por diferentes problemas na solicitação. Prova disso é o caso dos microempreendedores Júlio César e Andressa Alves, casal que gerencia um restaurante na Zona Leste de São Paulo. Com a restrição de funcionamento das atividades comerciais, a renda da família caiu abruptamente, já que a demanda via delivery se mostrou insuficiente. Ao realizar a solicitação do auxílio, no dia 23 de abril, receberam a devolutiva de que seus dados eram “inconclusivos” e que seria necessário realizar novamente a solicitação. Mais de um mês depois, ainda não houve resposta.

Além dos problemas com o auxílio emergencial e a clara falta de amparo estatal numa situação em que este seria indispensável, há também um descaso do setor privado. Esse é o caso da secretária Olívia Rodrigues¹², que trabalha registrada há dois anos em um escritório de advocacia no interior de São Paulo. Quando foi receber seu salário de abril, recebeu de forma inesperada e abrupta a informação de que não receberia o salário de maio, em razão da paralisação das atividades. Não houve nenhuma conversa prévia, tentativa de negociação ou mesmo diálogo. Por se tratar de um escritório de advocacia, é difícil acreditar que essa atitude se deve a falta de informação da possibilidade de realizar acordos para a suspensão do contrato¹³, mas mesmo que fosse esse o caso, a falta de empatia dos empregadores se mostra assustadora. Agora, sem receber o benefício que decorreria da suspensão do contrato, ela não pode nem ao menos solicitar o auxílio emergencial, já que ainda continua registrada.


Nessas linhas, encontram-se retratadas três diferentes situações que, por mais que sejam particulares, podem se estender a outras milhares de pessoas pelo Brasil, de diferentes formas e intensidades. Enquanto o número de casos e mortes causadas pelo coronavírus não para de crescer, aumentam também as dificuldades financeiras enfrentadas pela população mais vulnerável do país, ao mesmo tempo em que o Governo Federal mostra cada vez mais sua incapacidade em conter ou mitigar essa crise.


Há pessoas que nem ao menos tiveram o resultado de sua solicitação, há outras que estão recebendo somente agora a primeira parcela do auxílio - 3 meses depois do primeiro caso de Covid-19 no Brasil¹⁴. Enquanto isso, Paulo Guedes, ministro da economia, já anunciou que pretende reduzir o valor do auxílio¹⁵- o mesmo Guedes que afirmou, na reunião ministerial divulgada dia 22 de maio, que auxiliar pequenas empresas - aquelas com maior dificuldade de sobreviver a crise - seria perda de dinheiro e que os recursos públicos deveriam ser utilizados no resgate de grandes companhias.


Diante desse cenário, fica cada vez mais difícil acreditar que o problema de Bolsonaro e sua equipe é realmente com as pessoas que serão mais afetadas pelos efeitos do coronavírus na economia. Enquanto o tempo passa e a concessão do auxílio emergencial se vê repleta de erros, atrasos, recuos e até mesmo ameaças de redução, o Governo Federal se mostra cada vez mais empenhado no resgate de grandes empresas e setores da sociedade que definitivamente não correm o risco de morrerem de fome. E como sempre, desde que o Brasil é Brasil, quem paga a conta é quem menos tem.



REFERÊNCIAS:

[1]Agência Brasil. VALENTE, Jonas. OMS declara estado de emergência global em razão do coronavírus. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-01/oms-declara-estado-de-emergencia-global-em-razao-do-coronavirus>. [2]Ascom MS. RIOS, Floriano. Brasil confirma primeiro caso da doença. Disponível em: <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus>. [3]G1. PINHEIRO, Lara; MOREIRA, Ardilhes. OMS declara pandemia de coronavírus. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml>. [4]G1. Na Itália, número de mortos pelo novo coronavírus passa de 820. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/11/na-italia-numero-de-mortos-pelo-novo-coronavirus-passa-de-820.ghtml>. [5]Uol. China registra mais 22 mortos por novo coronavírus. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/03/11/china-tem-22-mortos-por-novo-coronavirus.htm>. [6]G1. Casos de coronavírus e número de mortes no Brasil em 24 de maio. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/24/casos-de-coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-24-de-maio.ghtml>. [7] Essa fala foi repetida diversas vezes, em diversas situações. Um desses momentos é possível ser visto aqui, por exemplo: Uol. ANDRADE, Hanrrikson. Ao atacar isolamento, Bolsonaro se vê sozinho: "Atiram em uma pessoa só. Disponível em: - <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/30/bolsonaro-nao-e-apenas-a-questao-da-vida-e-a-questao-da-economia-tambem.htm>. [8] Nesse sentido, ver: Greenstone, Michael and Nigam, Vishan, Does Social Distancing Matter? (March 30, 2020). University of Chicago, Becker Friedman Institute for Economics Working Paper No. 2020-26. Available at SSRN: <https://ssrn.com/abstract=3561244>. Correia, Sergio and Luck, Stephan and Verner, Emil, Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu (March 30, 2020). Available at SSRN: <https://ssrn.com/abstract=3561560>. [9] Estes são benefícios diferentes: o Auxílio Emergencial foi instituído pela Lei nº 13.982/20 e tem, como objetivo, estabelecer medidas de proteção social durante o período de enfrentamento ao coronavírus, focando-se principalmente em pessoas desempregadas ou microempreendedores. Já o Benefício Emergencial, que foi previsto pela Medida Provisória nº 936 e regulamentado pela portaria nº 10.486 do Ministério da Economia, tem como objetivo preservar a renda de pessoas que tiveram seu contrato de trabalho suspenso ou a jornada de trabalho e salário reduzidas proporcionalmente [10] Projeto independente de impacto social para auxiliar pessoas que estejam enfrentando dificuldades em razão da pandemia, criado por alunos e professores da Fundação. [11] Uol. Bolsonaro sanciona auxílio de R$ 600, mas não define data para pagamento. <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/02/coronavirus-bolsonaro-sanciona-auxilio-de-r-600-a-informais-e-autonomos.htm> [12] Nome fictício a pedido da entrevistada. [13] Que resultaria na possibilidade de que Olívia recebesse o benefício emergencial estabelecido pela MP 936 [14]Uol. Governo paga novo lote da 1ª parcela de R$ 600 para nascidos em abril. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/22/auxilio-emergencial-primeira-parcela-nova-tranche-nascidos-abril.htm> [15]Agência Senado. Senadores condenam intenção do governo de reduzir auxílio emergencial. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/22/senadores-condenam-intencao-do-governo-de-reduzir-auxilio-emergencial>

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