Os fins justificam os meios? O texto o qual busco responder, de Gabriel Linares, publicado aqui na Gazeta Vargas há poucos dias, estabeleceu esse questionamento acerca da manifestação de 29 de Maio e das próximas que seguirão para derrubar esse governo neofascista ¹. Traz, então, o questionamento sobre a legitimidade desse levante e se “vale a pena” ir para a rua no meio de uma pandemia como a que vivemos. Ainda, condiciona-se a legitimidade de irmos para a rua a um possível bom resultado, que seria Arthur Lira e seus pares se renderem ao processo de impeachment. Partindo dessas considerações iniciais, trago primeiros questionamentos: Quem e o quê dão legitimidade a uma manifestação? De que pedestal do reformismo mais insípido chamam-se os que tomaram frente na luta de embriagados?
O Brasil vive uma crise política, econômica, sanitária e ambiental e devemos ser categóricos ao apontar o culpado: Jair Messias Bolsonaro. Não, a culpa pela falta de comida na mesa, falta de vacinas e das quase 500 mil mortes não foi do COVID-19, e sim de um governante omisso, que fugiu das suas responsabilidades e deveres legais de garantir saúde e alimento ao seu povo. Decerto, uma pandemia avassaladora como essa afetaria esses campos, mas a falta de preparo, a omissão, as apostas depositadas em um plano caótico fundado em fake news, os ataques à ciência, as aglomerações, as tentativas de atrapalhar os municípios e estados e um gabinete paralelo para inventar planos sem comprovação para gerir o país foram determinantes para que o colapso se estabelecesse. Não estamos como estamos pela doença, mas sim por diretrizes absurdas do presidente.
Sendo assim, é descabido atrever-se a questionar cada narrativa de quem perdeu um pai, um filho ou um amigo querido e que foi à rua seguindo protocolos de segurança. Ainda, chegar ao ponto de querer colocar nessas pessoas a culpa de possíveis contágios de quem foi gritar pela vida, pela vacina, por testes em massa, pelo fim da matança à população preta, pobre e à população indígena, unidos no FORA BOLSONARO. Foram as pessoas mais afetadas pela pandemia que estavam se manifestando no dia 29 de maio. Foram movimentos de base, como Sem Terra e Sem Teto, trabalhadores que perderam seus empregos e que recebem um auxílio que pouco garante a cesta básica do mês, a classe artística esquecida pelas políticas públicas, pais que perderam a esperança em um futuro para suas crianças que não podem mais ir à escola.
Ademais, a luta por direitos fundamentais não deve ser olhada por essa ótica consequencialista, tampouco por um utilitarismo de feição “pequeno burguês" ² ao colocar panos quentes, na tentativa de acalmar a classe trabalhadora que deseja buscar algo que seja mais contundente. Pedir calma, sobriedade e dizer a quem passa fome ou perdeu alguém que faça um post no “Insta”, no sentido de que “até entende a insatisfação do povo, mas não podemos ir longe demais contra os opressores e fazer como eles”. Assim, caminha-se para um conservadorismo travestido de progressismo, que deslegitima uma luta por direitos e aponta outras soluções menos “transgressoras”.
Fato é que a luta por direitos se justifica por si só. Muitos deles só foram conquistados sob muito sangue de minorias e foi o que permitiu a democracia florescer em nosso país. A luta por direitos exige riscos, porque é a luta contra um sistema de opressão. Negar a legitimidade de uma luta pelos riscos que ela oferece é desrespeitar toda conquista que já alcançamos e todos os que sofreram, morreram e viveram por essas causas. Nossa ida para a rua requer cuidados, distanciamento, máscaras e coragem. Mas a democracia vale a pena. Não precisamos da legitimação pelo resultado que ela trará. Nosso grito tem fim em si mesmo e o entoamos com dor, sofrimento e responsabilidade.
Trago a memória que a redemocratização de nosso país não veio de forma gratuita, mas perante muita organização, protestos, mortes, tortura e luta de corajosos:
"- Eu tinha 19 anos, fiquei três anos na cadeia e fui barbaramente torturada, senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para os seus interrogadores, compromete a vida dos seus iguais e entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, senador, porque mentir na tortura não é fácil.
Agora, na democracia se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem, dignidade, fala mentira.” ³
São relatos como esse, de Dilma Rousseff, que nos mostram o quanto a democracia demandou luta e sofrimento e que hoje os lados, assim como naquela época, estão muito claros. O saudosista da ditadura, da tortura e dos torturadores, contraposto ao povo que clama por vacina e comida no prato. A democracia custou muito caro para que arrisquemos perdê-la sem que façamos o que está ao nosso alcance para protegê-la.
Vir à rua, mais de um ano depois do início da pandemia ⁴, mostra que outros caminhos foram tentados: manifestações em redes sociais, notas de repúdio e pedidos constantes da oposição no Poder Legislativo por direitos básicos. Essa era a última saída, uma medida extrema para uma situação extrema, que não ocorreria caso a pandemia tivesse sido levada a sério, ou mesmo um dos mais de 100 pedidos de impeachment. Fato é que colocar o país na rua aumenta os custos de se manter em omissão, aumentam os custos de não pautar o impedimento para Arthur Lira e também das tomadas de decisão que trazem caos pelo presidente. Ou seja, em uma democracia em frangalhos, evidenciar a soberania popular é fundamental para afastar a chance de golpe que nos ronda, colocar limites no gabinete do ódio, ao mostrar, para além do impeachment, que o povo se importa, fiscaliza e luta e que nenhum governante pode fazer o que bem entender. Além disso, sinaliza para Lira que algo deve ser feito com urgência e que sua omissão também está sendo cobrada.
O povo tem pressa, fome e está morrendo. E no extremo em que estamos, os riscos de ir às ruas são menores do que deixar que Bolsonaro continue seu projeto da morte. Não se movimentar agora com a assertividade e força necessária é que pode colocar tudo a perder. Cada pessoa que morre pelo atraso de vacina, pela falta de leitos e pela falta de testagens está na conta dele e não na de quem foi, com sacrifício e sofrimento, para a rua. O povo que luta pela democracia é valente e sabe dos riscos que corre, mas também dos riscos em não se posicionar. Sabemos que, se demorarmos muito nessa batalha, não sobrará ninguém para lutar.
“Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” ⁵
Nos próximos meses que seguirão, uma série de manifestações continuará tomando as ruas, pois nosso povo e nossa democracia têm pressa. 19 de junho será a próxima data para mostrar que o Brasil e seu povo ainda resistem. Nenhuma nota de repúdio ou ativismo de sofá manda esse recado.
por Miguel Guethi
Revisão: Bruna Ballestero
Imagem de capa: Tamara Nassif/VEJA
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Referências
O Neo Fascismo se caracteriza pela maneira atual de expressar em grupo ou governo características que faziam parte do Fascismo, tais como ataques contra a democracia, ódio às minorias, nacionalismo, dentre outras características que compõe uma nova ótica para pensá-lo nos dias atuais. O termo Neo Fascista é assertivo uma vez que se propõe a pensar nas características do fascismo para os dias atuais, sem que este seja exatamente igual, mas expressando algumas das características de um regime datado e que, portanto, não se repetirá nos mesmos moldes.
Conceito marxista referente àqueles que não se identificam como “classe operária” ou “classe trabalhadora”, mas são "simpatizantes"de suas causas, com cunho reformista que não muda as estruturas de poder. A favor dos direitos sociais, mas com muita cautela. No contexto do texto e da sociedade atual, refere-se a um reformismo pouco efetivo, uma “militância de sofá” de quem não sofre na pele.
Resposta de Dilma Rousseff ao senador José Agripino Maia, após ter sua idoneidade questionada por já ter mentido na ditadura.
Não deve-se esquecer que houve outras manifestações e greves, que não estão sendo invisibilizadas neste texto, mas que não tiveram a magnitude desse movimento atual em busca do impeachment.
Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores - Geraldo Vandré, 1968. Música entoada como canto de resistência contra a Ditadura Militar brasileira.
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