“— Por que você defende o ‘homossexualismo’?
— Por que não defender? Eles são piores que a gente? Escolheram ser? São seres humanos iguais, têm pais, irmãos, trabalham, pagam seus impostos.
— Mas você não acha que, sendo uma formadora de opinião, ao apoiar a homossexualidade, você poderia estar proliferando…
— Não, não, meu queridinho. O fato de eu falar não vai mudar nada. Ou as pessoas nascem assim, ou não nascem. Não é porque a Hebe Camargo falou… ‘Ah, porque a Hebe Camargo falou, maravilha, então vou ser’, não. Quem tem que ser é.”
Este é um diálogo retirado da entrevista de Hebe Camargo no programa Roda Viva em 1987. Nesta mesma edição, a apresentadora defendeu a legalização do aborto e admitiu ter liderado uma greve trabalhista. O cenário não era o mais propício para fazer tais revelações: o jornalismo, apesar do que vão defender os saudosos, não era o mais inteligente, muitas vezes coberto de preconceito disfarçado de acidez. Mas tampouco era preguiçoso, com todos os entrevistadores posicionados estrategicamente, confabulando a próxima polêmica em busca de um xeque mate: o momento em que o entrevistado iria se contradizer, ou, se dessem ainda mais sorte, o momento em que nem mesmo saberia o que falar. E nesse modelo, durante as quase duas horas de entrevista, a apresentadora opinou sobre todos os temas escolhidos, sem se esquivar ou se encurralar.
Um pouco mais à frente, no começo dos anos 2000, os populares talking shows ainda estavam no seu auge, e, entre as figuras icônicas desse período televisivo, destacava-se Rita Lee, conhecida por sua sinceridade desconcertante: “Crítico de música me odeia, porque eu sou linda, maravilhosa, tenho sucesso. Ah, problema!.. Disse ela modestamente” – declarava em mais uma das descontraídas conversas do programa Saia Justa. O show televisivo surgiu como nada mais que uma roda de conversas entre amigas, composto originalmente por Fernanda Young, Marisa Orth, Mônica Waldvogel e Rita Lee. Talvez, assistindo hoje, algumas falas já não sejam tão subversivas quanto no momento em que foram ao ar, talvez outras sejam mais atuais que nunca, mas o ponto é que elas eram ditas. Faziam parte do mundo pré media-training e seus enfeites.
Não acompanhei nada disso que escrevo aqui, então não pretendo fingir uma falsa nostalgia e choramingar sobre as entrevistas “do meu tempo” que sequer do meu tempo eram, visto que ainda faltavam quase duas décadas para eu nascer. Descobri muitos dos bons momentos de debates na TV por cortes no Youtube e até mesmo por TikToks com legendas sensacionalistas ocupando metade da tela. Mas falo delas porque existia algo que não temos mais, ou ao menos não tão frequentemente: a ousadia da fala. Entrevistadores com pouco a nenhum medo de constranger, e entrevistados achando graça do que os tabloides possivelmente iriam dizer.
Quando criança, ainda presenciei algumas vezes, na sala de casa, minha mãe, avó e tias assistindo a episódios já reprisados do Saia Justa no fim de tarde. Esses dias, então, busquei assistir novamente, na esperança de ativar alguma lembrança nostálgica que já não conseguia acessar. Até que vi a Fernanda Young questionar o que tornava uma mulher moderna, já que a mídia sempre a rotulava como uma pelas suas tatuagens e pelo seu corte “joãzinho”.
“O que que eu faço de moderno? Eu acordo super cedo, cuido das minhas crianças, trabalho”, questionava a apresentadora. E assim, fui transportada para uma dessas tardes, quando minha mãe, com seu trabalho, três filhas e algumas tatuagens, se viu muito representada na fala e achou que seria um bom argumento para defender seu conservadorismo, apesar do seu visual “moderno”– o que duvido muito ter sido a intenção de Young. O debate durou algum tempo, minha tia discordou: ou você tem tatuagens, ou é conservadora. Minha avó já seguiu outra linha: a aparência não tem nenhum alinhamento com valores pessoais.
Esse era o típico programa de domingo. A despretensão na fala, a liberdade na troca de pensamentos, as observações ousadas representam um tempo em que a autenticidade estava acima de qualquer convenção. O tema da conversa muitas vezes tinha uma importância secundária, o foco estava na maneira pela qual o diálogo era conduzido, em um formato despreocupado quanto à sua repercussão. Esse era o ambiente propício para fomentar o questionamento tanto entre os apresentadores quanto em quem assistia.
Não quero cair na ideia da falsa nostalgia, muito menos pretendo ignorar a evolução em vários aspectos. A televisão, os debates, o modo como nos expressamos, tudo isso muda, e é natural que mude, mas também sinto que perdemos algo ao longo do caminho. A coragem de questionar, a franqueza ao se posicionar, talvez tudo isso tenha ficado para trás e sido substituído pela cautela excessiva de manter a imagem impecável – ou pelo medo da notificação da equipe de relações públicas avisando que o patrocinador não gostou nada do que foi dito.
Em tempos em que a tendência é querer se “alienar” dos problemas do mundo por alguns instantes, o impulso é buscar consumir as maiores doses daquilo que os desconecta dos assuntos “chatos”. O foco são os entretenimentos fugazes, conversas leves e qualquer outro meio de fugir dos diálogos densos que ameaçam roubar a paz.
Entretanto, esses mesmos debates que muitos acusam de serem cansativos ou batidos, paradoxalmente, tornaram-se o suspiro de alívio entre o sufocante volume de temas banalizados. Isso ficou evidente com a recente veiculação da nova entrevista de Fernanda Torres no Roda Viva. Fragmentos do debate viralizaram por dias. A atriz, que já tinha mais de 30 anos desde a sua última aparição no programa, falou de literatura, produção audiovisual nacional, problemas raciais, entre outros tópicos.
Fernanda vai além de se contentar em limitar suas falas ao papel de atriz, e assume uma postura de formadora de opiniões. Consequentemente, conquista notoriedade pela sua imagem intelectual e pela sua capacidade de articular ideias e perspectivas sobre diversos assuntos. Essa é uma distinção cada vez mais explícita dada a tendência crescente de grandes figuras públicas manterem-se cada vez mais distantes e impessoais em suas aparições. Concordando ou discordando de seus apontamentos, o fato é que ela nos lembrou que não há porque criar uma lacuna entre a classe artística e o intelectualismo.
Nenhuma versão desse debate é nova. Há pouco mais de 20 anos a escritora Rachel de Queiroz assumia que já não achava a crítica literária tão relevante e sofisticada como antigamente – em meio a alguns posicionamentos questionáveis e tentativas vagas de se defender das acusações de ter apoiado o golpe militar. Acho que essas ideias do declínio dos debates e críticas sempre existiram, e sempre vão existir, resta-nos questionar se há algo que possamos tentar para contornar esse cenário.
Também reconheço minha hipocrisia. Não é que eu esteja pensando em fazer algo a respeito, por hora vou continuar a rabiscar uns textos por aí. Quem sabe daqui a algumas décadas eu acabe me tornando, além de uma senhora amarga, uma autora publicada de 50 anos e com pouco compromisso com a intelectualidade. Daí começo a fumar, deixo os outros justificarem minhas falas equivocadas dizendo que muito lá atrás eu escrevi algo interessante, apareço no Roda Viva, sabe, essas coisas.
Autoria: Ana Lívia Lima (@analivialpf )
Revisão: Laura Freitas (@lau_afreitas)
Imagem de capa: Fernanda Young, Marisa Orth, Rita Lee e Mônica Waidvogel no Saia Justa — Foto: Marcelo Soubhia/GNT
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