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Red pill: a pílula que cega a realidade e desperta o ódio


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Desde os primórdios do oriente, as mulheres foram propriedade do pai e, posteriormente, do marido, dependendo da posse vinda da figura masculina para ser reconhecida, tanto pelo Estado, quanto pela sociedade. No Brasil, na passagem do século XIX, os papéis de gênero ainda eram bastante limitados pelo Direito Canônico – o qual foi incorporado no primeiro Código Civil, resguardando os direitos masculinos sobre a esposa – e pela cultura colonial europeia, a qual compreendia o uso da violência como legítimo para coibir comportamentos considerados inadequados da esposa. Toda essa violação foi envernizada por uma moral patriarcal imposta socialmente, defensora da tese de que a figura feminina, observada como ser desumano e inferior, deveria se adequar aos princípios de obediência e valores enraizados.


Séculos depois, às custas de bandeiras erguidas e sangue de mulheres mortas pelo repúdio da misoginia, figuras femininas começaram a ganhar mais espaço e mais direitos, podendo escolher seu parceiro e, aos poucos, ingressar no mercado de trabalho. Daí em diante, junto de diversos outros direitos de existência considerados mínimos e já exercidos pelos homens, conquistas se aprofundaram em um avanço civilizatório, provocado por uma luta que ainda está em curso.


A mudança do papel feminino representa uma revolução enorme para a sociedade, propondo dinâmicas mais saudáveis e igualitárias entre diferentes grupos. Entretanto, junto de qualquer movimento revolucionário que ameace normas elitistas enraizadas socialmente, surgem as ações reacionárias. Em reação às novas dinâmicas da sociedade, tem-se crescido, cada vez mais, movimentos da “machosfera”, a qual engloba manifestações que exalam o machismo estrutural reproduzido na sociedade desde o início das colonizações. 


A machosfera abrange diversos movimentos com ideologias distintas, mas muitos se unem com discursos contra o feminino, seja pelo “Red pill”, sugerindo que a realidade moderna favorece as mulheres em detrimento dos homens, pelo “Men Going Their Own Way” (MGTOW), pregando que homens devem evitar, em protesto ao feminino, relacionamentos amorosos ou familiares, pelo “Pickup Artist” (PUA), ridicularizado o conceito de consentimento sexual e ensinando aos homens técnicas de manipulação, ou pelos “Incels”, cultuando a ideia de que homens possuem “direito” ao sexo e que as mulheres não deveriam privá-los disso.

 

A iniciativa “Red pill”, que carrega inacreditáveis 44 bilhões de visualizações mundo afora e quase 4 bilhões em 137 canais brasileiros, utiliza de seu nome – em português “pílula vermelha” – para fazer referência ao filme Matrix (1999), em que a personagem principal precisa escolher entre uma pílula azul, que a manteria aprisionada em sua vida de ilusões, e uma pílula vermelha, que a levaria a conhecer a verdadeira realidade. Esse movimento antifeminista acredita que, com a escolha de aderir à “pílula vermelha”, os integrantes do movimento irão descobrir a “verdadeira igualdade de gênero”, rejeitando direitos conquistados por lutas de diversas gerações de mulheres, ao acreditarem se tratar de “privilégios femininos”. 


No Brasil, dentre os movimentos incorporados pela machosfera, o “Red pill” ganhou grande notoriedade desde 2023, principalmente com Thiago Schutz, autodeterminado “coach de masculinidade”, o qual foi detido na madrugada do dia 29 de novembro, por agressão e tentativa de estupro. O coach vende ideias misóginas em suas redes sociais e cursos, lucrando com a perpetuação de violências contra mulheres. Dentre suas ideias, Thiago prega que homens não devem se relacionar com pessoas com mais de 30 anos, e defende como “ideal de parceira” aquela de perfil obediente e nova, que trata o homem como chefe de casa, não usa roupas curtas, é virgem e exala delicadeza, não podendo, por exemplo, ser divorciada ou defender ideias de igualdade entre gêneros. Em suma, Schutz consegue, com suas falas, sustentar a face mais perversa do patriarcado.


Esses influenciadores digitais, considerados “mentores de masculinidade” atuam como empreendedores de ideias machistas, transformando inseguranças afetivas e medos sociais em mercadoria online para homens inseguros com sua masculinidade. Ao venderem mentorias, prometem uma espécie de redenção, baseada na dominação da virilidade, no controle emocional e na rejeição do feminino. Lucrando com o sofrimento de jovens que buscam algum pertencimento, esses influencers transformam o padrão patriarcal de “masculinidade” em produto, usando a misoginia como estratégia de marketing, uma vez que, quanto mais extremista e violento o discurso, maior o engajamento e o lucro alcançado.


A ideologia desse movimento busca concretizar o conceito de masculinidade hegemônica, formulado por Raewyn Connell, que descreve o padrão cultural imposto e dominante de patriarcado usado como justificativa de poder hegemônico da figura masculina. Esse padrão,  que imputa o homem como ser racional, invulnerável, agressivo e hierárquico, é apresentado como necessário e natural, mesmo que seja fruto de uma construção social historicamente produzida pelas elites. Ao consolidar esse modelo como único, biológico e inevitável, esses movimentos deslegitimam expressões afetivas, vulneráveis ou colaborativas vindas de homens, perpetuando um ciclo de violência simbólica e emocional.


Ao disseminarem discursos conspiracionistas que narram a figura masculina como vítima da sociedade e ignoram as violências vividas diariamente pelas mulheres, os líderes do movimento convidam homens a rejeitar o feminino, pregando um desengajamento social para que o homem não interaja com uma sociedade, de acordo com a iniciativa, dominada pelo feminismo. Rotulando mulheres como inimigas e oportunistas, justificam táticas de manipulação e abuso psicológico, buscando retomar a “dominação masculina” que, segundo eles, é ameaçada pelo feminismo. Ignorando séculos de civilizações construídas à luz do patriarcado, em que mulheres eram consideradas indignas de direitos, os red pills criticam a mudança no papel social entre gêneros e deslegitimam garantias conquistadas por mulheres, criando narrativas que enfraquecem a criminalização da violência de gênero.


Boa parte dos movimentos da machosfera são formados por jovens heterossexuais com dificuldades de socialização e de estabelecer vínculos afetivos com mulheres. Em sua maioria, os adeptos possuem uma masculinidade fraca e procuram uma redução de mundo como uma espécie de defesa de suas fragilidades, buscando reafirmar sua virilidade. Ao manter o status quo, retaliar os direitos adquiridos por mulheres e, em diversos casos, fomentar a violência, a indústria da machosfera aproveita de homens fragilizados para faturar com livros, palestras e monetização de vídeos, fazendo com que seus discursos, ainda que vazios e sem fundamentos, virem filosofia de vida. 


O antifeminismo promovido por movimentos red pill ecoa discursos institucionalizados e neoconservadores que buscam desacreditar políticas de igualdade, fragilizar legislações de proteção às mulheres e restaurar hierarquias familiares tradicionais, rejeitando a pluralidade social e fortalecendo estruturas patriarcais de controle. O ataque ao feminismo, nesse contexto, serve de base para um movimento político de regressão civilizatória.


Em paralelo, dentre as pautas defendidas, tem-se a lógica do desempenho, que exige produtividade contínua, auto-suficiência e sucesso como medida de valor humano, produzindo um terreno fértil para sentimentos de fracasso oriundos do mito da meritocracia. Em uma comunidade que associa a masculinidade ao êxito e ao poder, qualquer frustração, seja ela afetiva, profissional ou financeira, é tida como inferioridade. Movimentos como o “Red pill”, em vez de reconhecerem as pressões estruturais perpetuadas pelo pensamento neoliberal, transferem a causa do fracasso masculino para o feminismo, reafirmando um ideal de virilidade alinhado ao neoliberalismo, que transforma a vulnerabilidade masculina em ressentimento e em consumo de conteúdos misóginos.


Além de acreditarem viver em uma sociedade que reprime o masculino, a maioria dos discípulos oriundos do red pill acreditam que a sociedade não discute como deveria problemas relacionados ao masculino, como o alistamento militar obrigatório e a invisibilidade de homens vítimas de violência doméstica. Tais pautas, reivindicadas por esses homens, no entanto, são abordadas pelo movimento feminista, já que boa parte dos empecilhos enfrentados por homens advêm do machismo,  que delimita padrões não só para as mulheres, mas também para os homens, ao impó-los papéis sociais restritos e duros.


A cultura perpetuada pelo patriarcado, na qual meninos são desincentivados, desde sua infância, a conversarem sobre suas emoções, contribui para que homens busquem conselhos de masculinidade em comunidades online, sendo atraídos para a machosfera. Em um contexto de insegurança e busca por pertencimento, esses movimentos oferecem respostas simples para angústias profundas oriundas do machismo, reforçando ciclos de violência. Nesse sistema, de caráter misógino, homofóbico, transfóbico e sexista, o masculino é visto como aquele que reprime outras formas de vivência da masculinidade – como a expressão da vulnerabilidade – divergentes da perpetuada pelo patriarcado. 


Embora o discurso red pill apresente-se como libertário, ele impõe um modelo de masculinidade bastante restritivo. O movimento da machosfera promete libertar homens de supostas amarras sociais criadas pelo feminismo, mas os aprisiona em expectativas rígidas de força, frieza emocional, auto-suficiência e liderança compulsória, reforçando padrões de virilidade que historicamente produzem sofrimento, violência e repressão emocional. 


Ao tomarem a “pílula vermelha”, os homens adeptos a esse movimento, na verdade, tornam-se cegos e não conseguem enxergar a realidade brasileira, na qual, excluindo os casos de subnotificação, uma mulher é estuprada a cada seis minutos. O movimento “Red pill”, que deveria despertar homens para realidade, os afoga em um cenário irreal, no qual os trabalhos informais e a sobrecarga doméstica imposta às mulheres não é vista como um peso, mas sim como uma função natural que deve ser seguida por qualquer mulher, bem como a sua disposição sexual para com o homem. O mesmo grupo de pessoas que denuncia uma suposta ameaça feminina quanto à sua existência, cala-se diante das 4 mulheres mortas todos os dias no Brasil. 


Presos em seus cenários falsos, os red pills não conseguem enxergar a realidade e continuarão a perpetuar dinâmicas patriarcais que ceifam a vida e adoecem a mentalidade de ambos os gêneros.

Autoria: Mariana Mendes

Revisão: Sarah Costa

Imagem de capa: Pinterest

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Bibliografia:


Harper’s Bazaar Brasil. Red Pill: especialista explica o que é movimento que incentiva machismo e preocupa sociedade. Harper’s Bazaar, 10 abr. 2023. Disponível em: https://harpersbazaar.uol.com.br/estilo-de-vida/red-pill-especialista-explica-o-que-e-movimento-que-incentiva-machismo-e-preocupa-sociedade/?amp. Acesso em: 9 dez. 2025. 

BBC News Brasil. Como coaches da 'redpill' atraem adeptos na esteira da crise da masculinidade. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2v1y49yp6vo. Acesso em: 9 dez. 2025.

Movimento Red Pill revela a face cruel e reacionária do machismo nas redes. VEJA, 10 mar. 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/comportamento/movimento-red-pill-revela-a-face-cruel-e-reacionaria-do-machismo/. Acesso em: 9 dez. 2025.

Representações sociais emergentes no universo Red Pill e MGTOW brasileiro. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, v. 28, jan.–dez. 2025, p. 1–21. doi:10.30962/ec.2870.

CNN Brasil. Feminicídio: quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil. CNN Brasil, 11 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/feminicidio-quatro-mulheres-sao-assassinadas-por-dia-no-brasil/. Acesso em: 09 dez. 2025.

RODRIGUEZ, Shay de los Santos. Um breve ensaio sobre a masculinidade hegemônica. Diversidade e Educação, v. 7, n. 2, p. 276‑291, 2020. doi:10.14295/de.v7i2.9291. NEXO Jornal. Machosfera: a violência de gênero no ambiente digital, 19 jun. 2025. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/explicado/2025/06/19/machismo-mulher-violencia-de-genero-machosfera-redes-sociais-internet. Acesso em: 9 dez. 2025.


 
 
 
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