Peguei para falar de um bicho-de-sete-cabeças agora, não é? O que é relacionamento? Alguém poderia dizer que trata-se de um contrato entre indivíduos que contém, como cláusulas, o compromisso de participação na vida íntima da outra parte, ou o contato com a família do outro e com amigos do outro; a apresentação formal da pessoa sob um título conjugal socialmente referenciado como “namorado, namorada”, “esposo, esposa”, “marido, mulher” — veja que o manual da mulher é intimamente ligado ao roteiro de vida moderno. Ser “mulher” é ser cônjuge? Que irritante a ideia, mas parece que essa é a expectativa que se tem em certo ponto da vida feminina. Tem-se também o compromisso para com a própria pessoa, geralmente elencado à exclusividade de afeto físico, e esse é geralmente o mais atentado elemento entre outros como carinho, atenção, respeito, audição e humildade. Engraçado que tudo parece uma exigência dentro da ideia de relacionamento, mas será que existe sequer alguma naturalidade nisso?
Quando falamos em contrato, é suposto ou sentido que as partes se submetem a um regime específico estabelecido entre elas, e por quê? Contratos casualmente surgem na vida moderna por interesse, pelo oferecimento de algo em troca do recebimento de outra coisa. Mas então o contrato de relacionamento é saudável ou é um mero negócio? E se for mero negócio, é, ainda assim, saudável? Não? Por quê? Bom, não desejo permanecer na ideia até o século seguinte, então compartilho agora apenas minha opinião imediata, mutante como sempre, e ainda lentamente mutante.
Relacionamento é uma circunstância que muda o status de um indivíduo, sua imagem social e cidadã, que elabora um formulário específico de comportamentos e ideias, exige planejamento, atenção, dedicação e cuidado e, acima de tudo, comprometimento. Leia o período anterior imaginando que falo agora de Compra e Venda. Pelo menos um pouco, encaixa, não é? Aluguel… encaixa. Alienação Fiduciária, Mútuo, tudo encaixa. Mas e se eu falo de Doação? Doação não requer aceitação da outra parte. Eu escolho me comprometer por decisão própria. Escolho entregar, contribuir, dar. E não condiciono isso a nenhum outro fator ou exigência da outra parte. Mesmo assim, posso decidir não fazê-lo se souber ou sentir que não receberei tratamento parecido. Isso parece uma exigência, mas acho que é somente amor próprio.
Então relacionamento pode não ser uma submissão eterna que vincula ambas as partes a partir de impedimentos e inconveniências? Acho que sim, e o mais saudável desses modelos é uma dupla doação. Não há que se falar em exigência quando tudo é feito por amor. Mas percebe que essa configuração é relativamente específica? É muito mais fácil associar relacionamento a uma das ideias anteriores do que a essa, pouco respeitada, pouco exercida, pouco compreendida. O contrato varia em suas cláusulas, em suas formas, em seus princípios e em seus objetivos.
Você, leitor, me diga se pensa que relacionamento aberto é muito distinto de relacionamento fechado. Se você acha que sim, posso ter comprovado minha teoria de que as pessoas prestam muito mais atenção no elemento da fidelidade do afeto físico do que em outras formas de fidelidade que citei — carinho, atenção, respeito, audição e humildade. Pois bem, retirando da pauta esse elemento em particular, vemos que é muito comum entre ambos os modelos boa parte dos pontos que os constituem. Então o que é o relacionamento em si quando formado por tantas peças diferentes? Minha resposta é que depende de quem se relaciona. Lembrando sempre que da amizade eu ponho a diferença na exclusividade do contato físico como único elemento discernível, mais óbvio, imediato e automático do que qualquer outro e, mesmo assim, determinante. E a cultura do relacionamento aberto e do “solteirismo”, nem mesmo tem qualquer conclusão porque é meramente cultural. De se acostumar, de se aprender e desaprender.
Vamos pensar em diferentes motivos que poderiam existir para que se quisesse namorar. Interesse por dinheiro; patrimônio, interesse pela imagem de “namorado, esposo ou marido, namorada, esposa ou mulher” em si, ou dessa imagem associada à outra pessoa como ícone (esposo de fulana, namorada de fulano). Interesse familiar ou de amizade (aproximação da família ou amizades do cônjuge). Interesse estratégico, que pode conter todos os anteriores individual ou coletivamente. Amor. Será que todas essas hipóteses cabem numa mesma definição? Claro que posso definir tudo como “relação entre pessoas” ou algo assim, mas isso é tão genérico que um simples bom-dia rotineiro torna-se um relacionamento de dez anos.
No fim das contas, seres humanos são complexos, e relacionamentos poderiam ser completamente ocasionais, sem tantas demarcações, definições e rótulos, mas ainda temos a mania de identificar tudo por grupos e categorias. Ainda temos muitas culturas para produzir e outras das quais nos livrar. Ainda temos ideias para fazer germinar e outras para abater. No fim das contas, sendo capaz de atingir a felicidade independente, esse tipo de questão passa a ser mera curiosidade e talvez assim, os relacionamentos sejam mais relacionamentos de fato, e menos pretensões, expectativas, atuações e exigências. E a princípio, tenho para mim que esse vício por categorizar as coisas leva a preconceitos de todas as naturezas, mas isso é conversa para outro texto.
Autoria: Rodrigo Ferreira
Revisão: Laura Freitas, Artur Santili
Imagem de Capa: Art from Puung
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