No texto de hoje, nossa redatora Luiza Castelo discorre sobre a resistência e como ela tem se revelado em meio ao isolamento social e ao caos que tomou conta do mundo nos últimos dias, em decorrência do assassinato de George Floyd, traçando uma reflexão sobre os crimes semelhantes que ocorrem no Brasil. Venha ler para saber mais sobre os atos de resistência que afloraram em plena pandemia, e como seu advento mostrou-se mais que necessário.
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Em 21 de abril de 1965, estreava no Rio de Janeiro a peça Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. A obra trazia uma série de interpretação de textos clássicos sobre o tema da liberdade escritos por autores como Sócrates, Marco Antonio, Platão, Abraham Lincoln, Martin Luther King, Castro Alves, Anne Frank, Danton, Winston Churchill, Vinícius de Moraes, Geraldo Vandré, Jesus Cristo, William Shakespeare, Moreira da Silva, Carlos Drummond de Andrade, etc. A peça foi proibida pela Censura Federal em 1966, mas se tornou uma das precursoras do movimento conhecido como “Teatro de Resistência”, um conjunto de obras e dramaturgos que se posicionaram contra o regime militar de 1964[1].
Ao procurar a palavra “resistência” no dicionário, nos deparamos com uma série de significados distintos, mas vou me debruçar apenas sobre dois, muito presentes no momento atual.
O primeiro é a “Tendência para suportar dificuldades, como doenças, fome ou grandes esforços”[2]. Essa é uma resistência passiva, que se baseia na capacidade para aguentar, lidar com situações de sofrimento e adversidade sem sucumbir, sem quebrar. O segundo significado relevante é o de “Recusa de submissão à vontade de outrem; oposição” ou “Defesa contra um ataque” [3]. Essa é uma resistência ativa, baseada na capacidade que uma força tem de se opor à outra.
Desde as primeiras semanas de isolamento social, vivemos em um estado de constante resistência passiva. Fomos obrigados a aguentar o confinamento, a solidão e a saudade. Fomos obrigados a lidar com o medo do que está acontecendo e de como as coisas serão depois que tudo acabar. Muitas pessoas perderam familiares e amigos, outras perderam empregos e demais formas de sustento. Alguns perderam ambos. No momento em que esse texto foi escrito, o Brasil acumulava cerca de 32.568 mortos e possuía um total de 584.562 infectados[4]. Como se o pavor da situação não bastasse, enfrentamos essa crise sob a (falta de) liderança de um governo absolutamente desqualificado para lidar com o cenário atual de maneira eficiente. Além da propagação de notícias falsas sobre o tema e desobediência das recomendações da Organização Mundial da Saúde[5], Bolsonaro e outros membros de seu gabinete constantemente obstam esforços de membros da Administração Pública que estariam aptos a coordenar ações contra a pandemia.
Somamos a esses pesadelos ainda as constantes ameaças autoritárias do governo e o crescente risco gerado pela tensão colocada sobre as instituições democráticas. Presenciamos ataques ao Supremo Tribunal Federal, pedidos por uma intervenção militar[6] e ameaças de um novo AI-5[7] . Isso para não citar as mais recentes atrocidades proferidas por Abraham Weintraub, Ricardo Salles e outros membros do governo Bolsonaro. Seguimos sendo obrigados a suportar tudo isso e mais um pouco. Resistimos.
Contudo, eventos recentes trouxeram à tona a necessidade do segundo tipo de resistência. O assassinato de um homem negro, George Floyd, por um policial branco em Minneapolis, EUA, no dia 25 de maio foi a fagulha que impeliu ondas de protestos anti-racistas e antifascistas ao redor do mundo. Nos EUA, os protestos ocorrem há mais de 10 dias em aproximadamente 140 cidades. Muitas delas estabeleceram toques de recolher, que os manifestantes continuam a desafiar mesmo após atos de repressão das forças policiais e ameaças do presidente Donald Trump de fazer uso de militares para dispersar as manifestações[8]. No Brasil, os atos norte-americanas desencadearam protestos antifascistas em várias cidades pelo país, além do protesto “Vidas Negras Importam”, que ocorreu no Rio de Janeiro em 31 de maio. O ato era pacífico e protestava contra a violência policial, mas terminou com bombas de efeito moral e balas de borracha disparadas contra os manifestantes[9].
O assassinato de George Floyd pode ter sido a fagulha de ignição para a onda de manifestações mais recentes, mas com séculos de racismo e violência estrutural contra a população negra nas costas, o Brasil não carece de razões nacionais para se revoltar. O número de mortes devido a intervenções policiais cometidas pela PM cresceu mais de 30% no primeiro quadrimestre de 2020 em relação a 2019[10]. Esse aumento se concentra intensamente no mês de abril, quando em pleno período de pandemia, foram registradas 119 mortes cometidas pela polícia no estado de SP, um aumento de mais de 50% em relação a abril de 2019[11]. Como bem afirmou Benedito Mariano em artigo para o jornal Estado de São Paulo, “aqui no Brasil os Georges Floyds são muitos”[12]. Duas das vítimas mais recentes foram João Pedro Matos (14 anos) e João Vitor Gomes da Rocha (18 anos), ambos jovens negros e periféricos, cujas mortes foram registradas com apenas dois dias de diferença[13]. Atos de tamanha violência estão muito longe de serem novidade, e demandam uma forte oposição.
Encerro esse artigo com os últimos trechos de Liberdade, Liberdade[14], que mais de quarenta anos depois de sua estreia, se mantém absolutamente relevante:
“Às vezes, no final de uma batalha, nem se sabe quem venceu; o vencedor parece derrotado. [...] Mas a cada ato de luta corresponde um passo da vitória.
A liberdade é viva; a liberdade vence; a liberdade vale. Onde houver um raio de esperança haverá uma hipótese de luta.
Resisto”.
[1] http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo613/teatro-de-resistencia;; [2] https://www.dicio.com.br/resistencia/ [3] Ibidem [4] Banco de dados do Google, alimentado pela Wikipédia e atualizados de hora em hora. Os relatórios diários também estão disponíveis no site de OMS. [5]https://noticias.uol.com.br/colunas/constanca-rezende/2020/05/20/novo-diretor-do-sus-divulgou-fake-news-para-uso-de-cloroquina-e-ofendeu-oms.htm; https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/30/bolsonaro-ignora-recomendacoes-provoca-aglomeracao-e-abraca-padre-no-rs.htm [6]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/bolsonaro-usa-helicoptero-para-sobrevoar-manifestacao-na-esplanada-contra-stf-e-congresso.shtml [7]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/10/31/eduardo-bolsonaro-fala-em-novo-ai-5-se-esquerda-radicalizar.htm [8]https://oglobo.globo.com/mundo/nono-dia-de-protestos-nos-eua-tem-desafios-ao-toque-de-recolher-menos-casos-da-violencia-24459807 [9]https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/31/rio-tem-protesto-vidas-negras-importam-em-frente-a-sede-do-governo.ghtml [10]https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/aqui-no-brasil-os-georges-floyds-sao-muitos/?amp [11]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/01/mortes-cometidas-pela-policia-entre-janeiro-e-abril-de-2020-crescem-31percent-em-sp.ghtml [12]https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/aqui-no-brasil-os-georges-floyds-sao-muitos/?amp [13]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/21/entrega-de-cestas-basicas-e-interrompida-por-tiroteio-no-rj-jovem-morre.htm [14]FERNANDES, Millôr; RANGEL, Flávio; Liberdade, Liberdade; 1965
Foto da capa: Leonardo González
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