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RESISTÊNCIA


Em meio à um mundo dominado pelo patriarcado e imperialismo, as histórias de resistência de minorias são censuradas e esquecidas nas memórias de poucos. A nossa redatora Laura Kirsztajn traz à luz a luta dos marginalizados.




Algo que sempre me incomodou ao ler livros e assistir a filmes sobre grupos historicamente oprimidos é que estes costumam tratar a sua libertação como algo cedido pelos outros, consequentemente apagando as histórias de luta e resistência empenhadas por esses povos. O fato é que seres humanos, sempre que ameaçados na sua integridade e liberdade, vão lutar e resistir: o instinto da preservação e sobrevivência vai sempre aflorar. Nunca acredite naqueles que afirmam ter existido alguma vez no mundo passividade por parte de minorias e grupos marginalizados.

Não faltam exemplos desse tipo de apagamento da resistência. Aqui no Brasil muitos ainda tratam o fim da escravidão como uma iniciativa unicamente da Princesa Isabel, sem que seja dado destaque e protagonismo ao movimento abolicionista. Entre as diversas faces da luta, o Quilombo dos Palmares, com cerca de 20 mil habitantes, resistiu por mais de um século contra diversos ataques portugueses e holandeses. Com uma extensão territorial quase do tamanho de Portugal, nesse quilombo desenvolveram-se atividades como a agricultura de subsistência, pesca e caça, bem como o artesanato com cerâmica, tecido, palha e metais. Seus líderes mais conhecidos foram Ganga Zumba e Zumbi.


Além dos quilombos, na Bahia, ocorreram cerca de 30 rebeliões de escravos. De grande destaque, tem-se a Revolta dos Malês (1835), levante organizado por escravos muçulmanos, e a Revolta dos Alfaiates (1798), que buscava a independência do Brasil para alcançar um regime político igualitário. Em 1885, 120 escravos de uma fazenda em Campinas fugiram em direção à cidade, entoando gritos de “viva a liberdade” pelo caminho.

Houve também a luta por meio da lei, feita por abolicionistas como o advogado Luiz Gama. Gama nasceu livre em Salvador, em 1830, filho de uma negra livre e um branco português. Sua mãe, Luíza Mahin, participou da já citada Revolta dos Malês, considerada a maior rebelião de escravos do Brasil, e da Sabinada, que proclamou a República Bahiense. Com a mãe foragida em virtude da participação nas revoltas, Luiz ficou com seu pai, o qual o teria vendido aos dez anos para quitar dívidas. Aos 18 anos, Gama foge e entra para a Marinha de Guerra, sendo depois de seis anos expulso por ato de insubordinação a um oficial. Na condição de ouvinte, frequentou a Faculdade de Direito da USP, onde sofreu intenso preconceito por professores e alunos brancos; mas, isso não pôs fim a seus estudos. Mesmo sem diploma, utilizando-se de todo o conhecimento que obteve em sua jornada, tornou-se rábula e libertou mais de 500 pessoas por meio do Judiciário. Mesmo quando não conseguia a libertação pela via judicial, coletava dinheiro para comprar a alforria. Seu heroísmo é destaque mundial por ter alcançado grandes dimensões na luta pela liberdade.


Outro povo que frequentemente é tachado por uma passividade que nunca existiu é o judeu. Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de cem guetos na área de ocupação nazista da Europa Oriental fizeram movimentos de resistência. Entre abril e maio de 1943, judeus do Gueto de Varsóvia, utilizando-se de armas improvisadas e roubadas, ao saberem que poderiam ser deportados para o campo de extermínio de Treblinka, iniciaram uma rebelião. A Organização da Luta Judaica (Zydowska Organizacja Bojawa) atacou tanques alemães com coquetéis molotov, granadas de mão e revólveres de pequeno calibre. Revoltas do mesmo tipo ocorreram em guetos como os de Vilna e Bialystok. Muitos jovens judeus conseguiram fugir dos guetos e foram para as florestas, onde se uniram às unidades de guerrilha soviéticas ou formaram grupos próprios contra os nazistas.


Também houve movimentos de libertação dentro de campos de concentração, inclusive nos centros de extermínio de Treblinka, Sobibor e Auschwitz-Birkenau, além de Kruszyna, Minsk Mazowiecki e Janowska. Em 1943, nos centros de extermínio de Treblinka e Sobibor, prisioneiros munidos de armas roubadas atacaram membros da SS e guardas da cidade polonesa de Trawniki, que eram colaboradores do nazismo. Em diversos campos, foram organizadas fugas para que eles viessem a unir-se às unidades guerrilheiras.

Símbolo da resistência italiana contra o fascismo, a música Bella Ciao tem uma origem ainda pouco conhecida. Alguns acreditam que ela é uma adaptação de uma canção Klezmer, gênero da tradição ashkenazi, especificamente a canção “Oi Oi di Koilen”; outros apontam que ela surgiu de canções populares de trabalhadores dos campos de arroz do vale do Rio Pó, no Norte da Itália, no século XIX. Com uma letra extremamente forte e motivadora, a sua tradução (aproximada) para o português é a seguinte:


Uma manhã, eu acordei

Oh, bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao

Uma manhã eu acordei e encontrei o invasor

Oh, partigiano, leve-me embora

Bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao

Oh, partigiano, leve-me embora, pois sinto que vou morrer

E se eu morrer como partigiano

Oh, bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao

E se eu morrer como partigiano, você deve me enterrar.

Me enterrar lá em cima, na montanha

Oh, bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao

Me enterrar lá em cima na montanha, sob a sombra de uma bela flor.

E todas as pessoas que passarem

Oh, bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao

E todas as pessoas que passarem vão dizer: “que bela flor”.

Esta é a flor do partigiano

Oh, bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao

Esta é a flor do partigiano que morreu em nome da liberdade.

Esta é a flor do partigiano que morreu em nome da liberdade.


Essa música não se limitou à luta da resistência italiana e, desde a metade do século XX até os dias de hoje, é entoada por aqueles que jamais perderão a fé na luta pela igualdade e liberdade, e no combate ao fascismo que ainda cerceia as sociedades contemporâneas. O ideal ainda é o mesmo, porque a força por trás dele, aquilo que torna todos nós seres humanos em busca da sobrevivência, nunca vai se alterar.


Olhando para essas memórias de resistência tão pouco valorizadas, minimamente ensinadas nas escolas e invisibilizadas pela mídia, penso que parte do dever da nossa geração é trazer de volta essa história que continua enterrada. Precisamos mudar a forma como contamos as histórias das minorias, alterar os nossos autores e as nossas referências, quase sempre colonialistas e imperialistas. Essas vidas de luta devem ser encaradas como motivação e exemplo nas várias formas de disputa que os mais variados grupos de minorias ainda enfrentam na atualidade. Quanto mais escondidos ficarem esses fatos, dificilmente haverá consciência de que a união das pessoas pode trazer mudanças, e menos olhos ficarão atentos às ameaças enfrentadas hoje ao simples direito de ser você mesmo.

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