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RIO VERMELHO

Nosso redator Felipe Takehara, compartilhou conosco uma fúnebre e angustiante crônica de uma realidade que assola a vida de muitos povos inocentes

O som emitido pelos alto-falantes era estridente e arrepiou a todos. Não obstante, aquilo não surpreendeu. A mensagem que reverberou pelas paredes de palha foi muito clara: que ninguém em hipótese alguma deixe suas casas até segunda ordem. Abdul chamou seus filhos para perto, Johura, uma menina de dez anos e Asmot, um menino de três, que brincavam juntos, e apertou as mãos de sua esposa, Tayeba, grávida de seis meses. Sabia que não viria coisa boa, e que ele e sua família estavam em perigo, aliás, não se lembrava se alguma vez já tivesse sido diferente.


*


"Rápido", ordenou o major Denpo, aos soldados que subiam nos caminhões. O batalhão se preparava para uma missão importante, na visão do major, uma questão de segurança nacional, que caso não seja resolvida, o país, a nacionalidade, o próprio modo de ser de seu povo estaria em risco, condenado a desfigurar-se. Major Denpo não é um homem louco. Ao lado de muitos, sustenta que o grupo do qual fazem parte Abdul e sua família está cometendo o pior crime que se possa fazer contra um país, isto é, macular a pureza de seu povo, enevoar a sua identidade, ainda que as ações do grupo, minúsculo e pobre, se limitam ao simplesmente existir, existir do seu modo. O major é um homem que literalmente vê a materialidade do mundo vestida com os ideais e concepções que incorporou, de modo que, ao ver um objeto, o que ocorre em sua mente é a sua concepção que tem sobre o objeto, por vezes distorcida e polimorfa, e não ele em si. Portanto, ao observar os seus homens embarcando nos caminhões, o que está sendo processado em seu cérebro, verdadeiramente, é a imagem de uma nação soberana, independente, com seus símbolos pátrios a pulsar como fogos de artifício, os campos e colinas saudáveis e pujantes de alimentos e recursos, e seu povo forte, audaz e unido, que através do seu braço armado está trabalhando árduamente para combater este mal, esmagando-lhe ao final. Os caminhões, carregados e prontos, se dirigem ao objetivo, uma pequena vila próxima da fronteira. Já no local, o major Denpo pega um dos auto-falantes, e grita uma mensagem.


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Sem atrasos, a carnificina começou. Primeiro, os soldados entraram em todas as cabanas da vila procurando por homens e garotos mais velhos. Um trio de soldados invadiu a cabana em que moravam os vizinhos de Abdul. Nela estavam um homem velho e seu filho, que cuidava do pai. Arrastaram o filho para o lado de fora da cabana e começaram a lhe espancar. Com as costelas quebradas e cheio de hematomas, o filho vê seu pai ser alvejado com tiros no rosto, e o riso debochado dos soldados. Um deles se aproxima, chuta com força seu peito, e coloca o cano da arma próximo ao seu ouvido. O soldado dispara sete vezes, rompendo seu tímpano, depois chama seus dois companheiros e começam a espancar novamente o rapaz até ele perder a consciência.


Horrorizado, Abdul assiste a morte de seu vizinho e o espancamento do rapaz por uma fresta na parede. Ao escutar o som de botas se aproximando, Abdul se coloca na frente de sua família e diz para ficarem juntos. O cheiro de fumaça no ar e os gritos de desespero deixam a família apreensiva. Quatro soldados entram na casa. Abdul se aproxima dos homens com a intenção de perguntar o que está acontecendo, pois anteriormente foi dito que, ao menos nesta vila, seu povo estaria em paz. Antes mesmo do som sair pela sua boca, um dos homens levanta a arma contra Abdul e dispara em seu peito. O homem cai morto. Johura e Asmot começam a chorar. Tayeba avança contra o soldado que disparou, mas este lhe dá uma coronhada no rosto, a mulher cai e é arrastada para fora da cabana. Os outros dois homens levam as crianças também para o lado de fora, enquanto o último começa a espalhar combustível pela casa. Um homem de pé, com um alto-falante nas mãos, está próximo observando.


Segurando-a pelos cabelos, o soldado que matou o marido de Tayeba faz um aceno para o companheiro que acabara de atear fogo ao combustível, que rapidamente se alastrou pela cabana de palha. Os homens começam a despir Tayeba, que se debate fervorosamente, pois já está claro a intenção desses homens, querem estuprá-la. Revelado o corpo de Tayeba, os soldados se enfurecem. O volume de sua barriga deixa claro que está grávida, o que para esses brutos significa a inibição de seu gozo, portanto, os homens começam a espancar Tayeba, primeiro, por não lhes conceder o prazer de estuprá-la, e segundo, por lhes fazer perder o seu tempo. Horrorizados vendo a mãe ser pisoteada, Johura e Asmot gritam desesperadamente. Irritado com aquele choro, o homem que segura o alto-falante dá o instrumento ao seu subalterno e caminha em direção a criança menor, que chora mais alto e tem a voz mais aguda.


Major Denpo agarra Asmot pelo braço, mas antes o encara, e olha no fundo de seus olhos desesperados. A visão de uma névoa suja, marrom, espessa, ocorre em sua mente. Nela estão reunidos dez mil homens barbudos vestidos de túnicas e sandálias, eles falam alto, e não escutam um pequeno monge que reza em frente à uma estátua dourada. Num turbilhão repentino, os dez mil homens se transformam em cachorros pretos e sarnentos, que avançam sobre o pequeno monge e corrompem a sua estátua, espalhando-se pelas ruas das cidades e deixando para trás o seu pêlo sujo, que faz apodrecer o solo e morrer as árvores, e o pior, eles uivam felizes como se tudo fizessem conscientemente. A névoa então se condensa na forma de um pequeno homem, um garoto na verdade, é Asmot, e ele está a crescer e se reproduzir, multiplicando a névoa e os homens barbudos. Tudo isto, Denpo viu em um instante, no momento em que seus olhos se encontraram com os de Asmot. O garoto era uma semente que conceberia a àrvore do seu terror. Aquilo Denpo não poderia permitir. Então o major arrasta o garoto, e o arremessa para dentro da cabana em chamas.


*


Johura está exausta. Não se lembra muito bem do que aconteceu, ainda que consiga ver aquelas imagens horríveis a todo instante. Viu seu pai morrer alvejado à queima-roupa, sua mãe grávida espancada impiedosamente, e seu irmão mais novo arder em chamas. A verdade é que Johura é uma garota forte, e será uma mulher valente. Conseguiu escapar das mãos do soldado que a prendia enquanto os homens terminavam de espancar sua mãe. Fugiu para a floresta que fica logo ao lado da vila. Foi perseguida, mas seu corpo leve a permitiu correr mais rápido e mais longe. Está sentindo uma ardência insuportável em sua mão, mas não consegue ver o que há, está toda suja de lama e sangue. Provavelmente, algum projétil a atingiu de raspão, pois embora machucada, a mão ainda está inteira. Johura se esconde no meio da mata, mas se mantém perto o suficiente para ouvir os gritos e o desespero de sua vila. Quer estar perto para poder voltar a tempo de salvar sua mãe, isto é, se os soldados a pouparem, é claro.


Cuidadosamente caminhando pelos arbustos, Johura sente o cheiro do rio e caminha em sua direção, atenta para que não se depare com algum soldado. O rio corre ao lado da vila e deságua no mar, na Baía de Bengala, portanto, Johura sabe que está perto de casa, ou do que sobrará dela. Aproxima-se da margem, quer lavar suas mãos e seu ferimento, beber um trago também, hoje correu como nunca antes. Johura percebe uma cor estranha no rio, não há aquele bege levemente turvado, ele está mais escuro, vermelho. Quando sobe os olhos e acompanha o caminho do rio acima, suas pernas se enfraquecem e Johura sente um terrível mal-estar: há uma dezena de corpos descendo o rio, e vários deles estão decapitados, as cabeças os acompanham, boiando, terrivelmente reconhecíveis. Johura sentiu raiva, suas mãos apertaram o solo argiloso no qual estava ajoelhada, e o ferimento que estava quase cicatrizando se abriu, misturando o sangue e o barro. Olhou para o céu, e com todas as suas forças, gritou silenciosamente pedindo ao seu deus que todos aqueles homens passassem por tudo o que seu povo passou, e que igualmente sofressem.

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