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SAGRADO PECADO DA VIDA



Nota da editoria da Gazeta Vargas: O texto a seguir é um relato anônimo, que não reflete a opinião geral da Gazeta Vargas, e que pode ser um “gatilho” para algumas pessoas, por trazer o relato de uma experiência religiosa especificamente traumática.

No ápice de minha depressão, houve um dia que mudou minha história - daqueles na vida em que você pode apontar, mesmo anos depois, e dizer como foram impactantes e determinantes as decisões que você tomou. Na estação de Pinheiros, com os fones de ouvido no máximo, andando de um lado para o outro, chorando como nunca.


- O que tem aquele menino em prantos?

Pensava meia dúzia de pessoas que me pararam para perguntar se eu estava bem.


Em palavras balbuciadas, perguntava a Ele:

- Porque me desamparaste? - sentindo-me em uma falsa releitura de Mateus 27:46¹, ou mesmo tentando me convencer de que aquilo era apenas um momento e que viria a passar.

- O que queres de mim? Do que mais preciso abrir mão? O que ainda estou fazendo de errado? Quanto tempo mais eu aguentaria viver sem me atirar em uma decisão irreversível para que aquela dor acabasse? Seria aquele o dia que terminariam minhas aflições? E entre um passo e outro, passavam pela minha cabeça momentos em que me sentia como se estivesse sendo acorrentado.


Desde pequeno, frequentava a Igreja com meus pais e já era ensinado sobre todos os pecados que eu viria a cometer. Com o tempo, na minha adolescência, passei por algumas “imersões divinas”, em acampamentos jovens organizados pela igreja. Depois de um deles, no auge dos meus 17 anos, resolvi que um dos propósitos de minha vida seria o de seguir aquele caminho de santificação. Largaria as “coisas do mundo” e viveria para agradar e servir a Ele.


Para um jovem que quer ser aceito dentro daquele ambiente santo, abrir mão de viver como meus “amigos do mundo”, das festas, dos beijos, era um passo que eu tinha que dar. Cada deslize era observado, julgado e comentado pelos outros iguais, que também buscavam o caminho moralista da santificação. Calcados na ideia de pecado, justificavam-se todas as proibições - desde uma ficada com alguém, uma cerveja, uma saída para um “lugar do mundo”, companhias que não eram “de Deus”, até a parte de não ser um dizimista da Igreja, que poderia estar te levando ao pecado ou ao fracasso. Parecia ser um dos lugares mais saudáveis para se estar, constantemente lembrado a repreender toda sexualidade dentro de mim e qualquer outro “desejo da carne” que eu tivesse.


Amizade não é um termo que eu usaria para descrever minha relação com aqueles com quem passei inúmeros finais de semana de minha vida - ainda mais ao pensar que nunca mais ninguém me procurou quando deixei aquele local. Competição faz mais sentido. Quem ali agradava mais a Ele? Quem conseguia fazer escondido coisas que tinha vontade sem ninguém descobrir? Quem teria mais “dons”? Falar em línguas, curar, operar milagres, interpretar a palavra². Quem conseguia converter mais “pessoas do mundo”? A superioridade moral de quem fazia tudo para agradar a Deus enchia a boca dos jovens. “Você está desperdiçando sua vida com coisas do mundo, eu vou te apresentar a mudança, você mudará quando conhecer o meu Deus.” Esse discurso vinha acompanhado de condenações aos “pecados”, travestidas de “Deus tem mais para você do que …, larga essa vida ”.


E o reacionarismo não ficava fora disso, ou mesmo a intolerância religiosa a outras crenças. Havia a defesa de Bolsonaro explicitamente falando “votem nele”. O homem, hétero, chefe e sacerdote do lar era a regra. Pregava-se a concordância com ideias machistas, como a da função da mulher; racistas; homofóbicas, com a direta condenação e não aceitação da população LGBT; além do culto ao criacionismo e à terra plana, que se aglutinaram na orientação política direta para sujarem as mãos no obscurantismo do 17 nas urnas. Já os praticantes de outra fé precisavam de resgate. Não foram poucas as vezes em que se fez a comparação do espiritismo, islamismo e outras crenças com o inimigo, com o diabo, ou forças malignas. Correntes de oração eram constantemente levantadas nesse combate do mundo espiritual, para que fossem libertos os pagãos. Já as missões, de evangelizar outras culturas e crenças, tinham das maiores honras dentro da Igreja.


E, ao passo que cada episódio ia passando em minha cabeça, revisava também cada coisa que deixei de fazer, cada vontade que sufoquei dentro de mim. Minha sexualidade que havia sido reprimida desde criança, os beijos que deixei de dar, as paixões que deixei de viver, os amigos que deixei de lado para seguir no caminho santo. Nunca saberia quantificar o quanto de vida deixei de lado para estar nesse lugar em que buscava aceitação dos meus iguais, dos meus pais e de Deus. Por que eu continuava ali? Por que eu ainda tentava engolir forçadamente todos esses dogmas com os quais não concordava para me encaixar? Eu estava no meu limite de abrir mão de tudo para seguir a Ele. Pouco sobrava de mim, mas não era Dele que eu estava cheio.


Minha alma se contorcia externalizando cada camada de minha depressão após 19 anos presa onde nunca fez parte verdadeiramente, tampouco me trazia qualquer felicidade ou amizade. O quanto eu iria aguentar mais estar nesse lugar em que eu não podia ser eu? Em que o ódio se transmitia muito mais que o amor na prática, e os olhares de julgamento sobravam ao invés dos de solidariedade. Quantas foram as vezes em que me senti acolhido e amado?


E dali, na plataforma, depois de quase uma hora andando perdido, gritava abafado o pouco do meu eu que sobrava. Eu precisava tomar uma decisão de como iria me libertar. E foi ali que decidi, quando pisei no vagão para voltar para casa. Eu escolhi viver.



Nota do autor: O texto não é uma crítica à fé, tampouco à figura de Deus ou Jesus. Mesmo dentro da igreja, discute-se problemas relacionados ao fato de que a religiosidade (como conjunto de dogmas) pode ser prejudicial à experiência da pessoa com a Fé. Não faltam momentos em que a Bíblia retrata a crítica de Jesus à hipocrisia e aos julgamentos descabidos por parte dos praticantes da Fé, muitas vezes traduzida na imagem dos fariseus.



Revisão: Letícia Fagundes e Cedric Antunes


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Referências:


¹“ E perto da hora nona exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”


²Os Dons do Espírito Santo são tratados em diversos momentos da Bíblia como “poderes 4:08

espirituais” dados por Deus. Em Marcos 16:16-18:

“Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.

E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas;

Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão.”



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