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SER, VIVER E MORRER NO PINÓQUIO DE GUILLERMO DEL TORO



O filme Pinóquio de Guillermo del Toro (2022), dirigido por Mark Gustafson e — você adivinhou — Guillermo del Toro, trata de muitos temas, como perda, família, pertencimento, amor e guerra. No entanto, dois deles me saltaram mais aos olhos, e acredito que eles englobam todos os outros: identidade e efemeridade. Identidade porque há um claro embate entre as personalidades e os papéis que não são ofertados, mas forçados goela abaixo de Pinóquio, e o processo de descobrimento identitário pessoal ao qual o protagonista tem, penso eu, direito de sofrer. Já a efemeridade é jogada como um véu na narrativa desde seu início pela morte do filho de Geppetto e posta em pauta ao longo da história pela aparente imortalidade de Pinóquio. Permita-me explicar.


Ambientada na Itália facista da Segunda Guerra Mundial, a trama começa após a já citada morte de Carlo — filho biológico de Geppetto — em um bombardeio, que joga o carpinteiro na tristeza e no luto. Tempo depois, durante uma crise de saudades, o pai desconsolado e bêbado decide cortar um pinheiro — onde se abriga Sebastian J. Cricket, o grilo falante que narra a história — para construir um boneco à imagem de seu falecido filho, o que logra sucesso em fazer, apenas para cair no sono depois.


À noite, uma entidade que aqui chamarei de Vida aparece e transforma Pinóquio em um ser vivo, para espanto de Geppetto na manhã do dia seguinte. A partir daí, o boneco recém-animado interage com personagens como Conde Volpe, um showman falido que quer se aproveitar do potencial circense de Pinóquio, e seu macaco, Spazzatura; o Podestà, a versão fascista do que seria o prefeito da vila onde começa a narrativa, além do próprio Geppetto e do Grilo Falante. Além disso tudo, após ser atropelado, Pinóquio descobre que não pode morrer e, quando sofre alguma fatalidade, apenas é enviado para a sala de outra entidade — que aqui chamarei de Morte — por um tempo que aumenta cada vez que ele morre.


Após ganhar a vida, Pinóquio é retratado como um garoto inocente, curioso, hiperativo e desobediente, o que surpreende Geppetto – como se a réplica de madeira de seu filho morto ganhar vida já não fosse surpresa o suficiente. O carpinteiro não abraça imediatamente a ideia de ter o boneco como filho, mas se vê sem alternativas de conter um Pinóquio recém-nascido e maravilhado com o mundo em seu pequeno chalé, de modo que o leva até sua aldeia – onde seu novo filho é rechaçado por sua óbvia diferença. É assim que a primeira identidade exterior é atribuída a Pinóquio; Geppetto o criou baseado em Carlo, que é quem o idoso verdadeiramente quer como filho. O povo da aldeia e o próprio Geppetto mostram a Pinóquio que, para ser amado, ele precisa se tornar um novo Carlo. Não há espaço para a descoberta de si próprio; o boneco já teve sua identidade desenhada antes do próprio nascimento.


Ao se dar conta disso, o garoto de madeira se prepara para ir à escola e se conformar com as expectativas colocadas sobre ele, quando é interpelado por Conde Volpe e Spazzatura. Vendo Pinóquio como uma ferramenta para turbinar seu espetáculo e ascender à fama e à riqueza, Volpe o adula com promessas de uma vida de diversão e grandeza no palco, impondo ao menino mais uma identidade; a de Espetáculo. Após se apresentar pela primeira vez como uma marionete que não precisa de cordas, Pinóquio é ovacionado por uma plateia admirada, finalmente se sentindo amado. Entretanto, um contrato abusivo firmado inocentemente com Volpe impõe, sim, amarras ao boneco – que é impedido legalmente de parar de se apresentar. Como Espetáculo, a diferença de Pinóquio não é aceita, mas colocada em um pedestal e aproveitada como gerador de ganhos para seu chefe por meio de um contrato arbitrário, o que prende o protagonista a essa identidade.


Quando o Podestà percebe que Pinóquio não pode morrer, ele também passa a vê-lo não só como uma criança desobediente a ser transformada em uma unidade obediente do governo autoritário, mas também como o perfeito Soldado, que pode lutar e cair pela nação quanto for necessário. Após romper com o Espetáculo, ele é mandado a um campo de treinamento militar para jovens, onde é esperado que ele adote essa uma nova identidade cruel e impiedosa, para servir sua bandeira e, assim, ser respeitado e até temido. O cenário da Itália fascista é acertado por conta da vigência desse sistema ideológico que suprime as diferenças em favor de um ideal de cidadão puro, belo e correto, processo realizado desde a infância. Pinóquio rompe com o Soldado ao se recusar a desumanizar oponentes em uma simulação de guerra e, durante um bombardeio inimigo, fugir do campo militar.


Assim, é possível notar que a curta existência de Pinóquio é preenchida por muitas figuras de autoridade que tentam se impor sobre ele e determinar o caminho “certo” a ser traçado, seja por amor, por dinheiro ou pela pátria. As felicidades e tristezas do processo contínuo de descoberta do eu são soterradas pelas expectativas e demandas externas que podem ser de um caráter abertamente compulsório, como no caso das identidades Soldado e Espetáculo – o primeiro pela força, o segundo por um contrato exploratório –, mas também ter uma pressão velada, como na identidade Carlo. Nessa última, Pinóquio é coagido a desviar de seu próprio caminho e negar suas diferenças naturais por uma força interna que deseja sentir um amor verdadeiro e paterno de Geppetto, quando na verdade esse amor deveria vir naturalmente.


Eventualmente, Pinóquio foge de casa com o circo com planos de enviar dinheiro de volta a Geppetto e, assim, orgulhá-lo de alguma forma. Diante disso, o carpinteiro percebe o erro em tentar reviver a memória de Carlo pelo boneco, e decide ir atrás dele. Finalmente, é rasgada de vez a identidade Carlo, e Geppetto aceita seu novo filho em sua verdadeira, imperfeita e diferente essência: Pinóquio.


A temática da descoberta do eu caminha de mãos dadas com o outro elemento que citei no começo do texto, que é a efemeridade. No início da trama, a brevidade de nossa existência é demonstrada como algo terrível, quando o pequeno e amado Carlo tem sua morte assinada por condições ocasionais e totalmente fora de seu controle, fato que atira Geppetto em anos de luto e alcoolismo. A vida é um sopro que, quando cessa, dilacera os que ainda vivem. A própria confecção de Pinóquio é a tentativa do carpinteiro de negar essa cruel realidade.


É essa mesma mentalidade que move o protagonista a ficar animado quando é informado por Morte – instalada em seu misterioso aposento repleto de ampulhetas – que, tendo recebido uma alma “emprestada” por Vida, não pode realmente morrer: Eu sou o menino mais sortudo do mundo, exclama Pinóquio após sua segunda morte. A negação da efemeridade é uma vitória, e por mais trágicas e abruptas que sejam as condições, o garoto sempre voltará. Todavia, diante do júbilo de Pinóquio, Morte adverte: a coisa que torna a vida humana tão preciosa e significativa é o quão breve ela é. Com esse alerta e o lembrete de que Pinóquio estaria fadado a sofrer a perda de seus amigos e entes queridos, a personagem mostra ao protagonista que a vida não é só sobre existir durante a maior quantidade de tempo possível, mas aproveitar ao máximo os momentos, sejam de alegria ou tristeza.


Assim, podemos interligar os dois grandes assuntos do longa. Afinal, para aproveitar ao máximo todos nossos momentos disponíveis, é preciso que possamos descobrir nossa verdadeira identidade – despida de expectativas implícitas e explícitas impostas a nós – e vivenciar todas as dores e prazeres contidos nela e nesse processo de revelação. E, como todos sabemos, só temos uma chance para realizar isso.


Mas, diferente do resto dos humanos, Pinóquio tem diversas chances, mas em quase todas sofre pela supressão de sua descoberta interna e só quando finalmente rompe suas amarras é que toma as rédeas de sua própria jornada. Isso acontece após Pinóquio salvar Geppetto e Grilo da barriga de uma monstruosa baleia, que os engoliu enquanto tentavam ir atrás dele, quando o menino morre novamente e deseja voltar imediatamente do pós-vida para salvar seu pai do afogamento. Perante essa situação, Morte oferece a Pinóquio que quebre a ampulheta que determina o tempo que o garoto deve ficar morto, o que o faria voltar à vida imediatamente – mas o tornaria mortal. Movido pelo seu amor e finalmente senhor de suas ações, ele arrebenta o artefato e salva o carpinteiro, afogando-se no processo. Na praia, o Grilo, Geppetto e Spazzatura – que também abandonou o Conde Volpe – amargam a perda de Pinóquio quando Vida aparece e retorna o menino a vida uma derradeira vez a pedido do Grilo, a quem havia concedido um desejo caso cuidasse do boneco.


Finalmente, Pinóquio se vê rodeado de uma família que o ama em sua identidade real e sincera, e é movido a tirar o maior proveito de seu tempo limitado com eles. De fato, o fim do filme retrata cenas dos quatro personagens vivendo felizes, sob narração comovente do Grilo. Conforme o tempo passa, Geppetto falece, seguido do Grilo – que descobrimos estar contando a história do pós-vida – e de Spazzatura. Porém, mesmo que uma cena melancólica por conta das perdas, é tudo mostrado sob uma ótica doce, o que contrapõe a perspectiva funesta sobre a brevidade da vida que presenciamos no início do filme.


O filme Pinóquio de Guillermo del Toro (2022) versa sobre dois temas difíceis de serem tratados: identidade e efemeridade. Difíceis porque falar deles é, muitas vezes, uma tarefa que requer um olhar para dentro de si, o qual pode revelar verdades inconvenientes e dúvidas espinhosas. Mas talvez seja bom descortinar essas questões, ao menos enquanto ainda estamos aqui para fazê-lo. Afinal, parafraseando o Grilo Falante:



“O que acontece, acontece, e então... nós partimos”




Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: André Rhinow, Anna Cecília Serrano e Beatriz Nassar

Foto de capa: Guillermo Del Toro’s Pinocchio Main Trailer/ Netflix


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