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SOBRE CANÇÕES E LEMBRANÇAS



Não gosto desse passarinho. Não gosto de violão. Não gosto de nada que põe saudades na gente.” — Guimarães Rosa


É verdade, Guimarães Rosa estava certo. O violão de fato põe saudades na gente. Saudades grandes demais para caber em uma clave de sol.

Mas, antes de falarmos em saudades, vamos dar alguns passos para trás…


2008

Lembro-me de quando decidi que começaria a tocar guitarra. Foi logo após assistir ao riff de Back in Black sendo reproduzido no filme “Escola de Rock”. Cresci escutando rock 'n' roll por influência da minha família, o que me levou a ver diversas gravações dos espetáculos das grandes bandas ao longo da infância. Entretanto, nenhuma dessas gravações conseguiu despertar tanta motivação e tanto interesse em fazer parte desse mundo quanto ver aquelas crianças sendo levadas ao limite pelo queridíssimo Jack Black, o metaleiro de Kickapoo. Então, aos 6 anos de idade, coloquei na cabeça que aprenderia a tocar tal instrumento para me tornar um roqueiro irado, daqueles que fazem altos solos em cima do palco e quebram a guitarra ao fim dos shows, levando a plateia ao delírio!


Bem, isso seria muito legal… mas a vida não é esse morango, certo?


As primeiras aulas até que foram legais, porém definitivamente não estava em meus planos ter que iniciar o curso com um Di Giorgio — um violão clássico bem trabalhado, que tenho até hoje no canto do meu quarto — e não uma besta indomável, que me carregaria sobre a multidão ao tocar a intro de Sweet Child O' Mine. Além disso, crianças não foram muito bem projetadas para manterem o foco por longos períodos de tempo, então as aulas eram divididas entre exercícios de escala e momentos de “professor, olha como a educação física deixou meu pé gordinho!”. Assim, o Slash mirim teve uma experiência bem morna e sem sal no início de sua jornada. Bom, pelo menos até a chegada daquela tarde em que tudo mudou.


2009

Aconteceu em uma tarde ensolarada no mês de julho, durante uma visita a um de meus melhores amigos na época. Estávamos no meio de uma brincadeira nossa, correndo de um lado para o outro do apartamento, até que uma vibração em meu peito desacelerou minhas pernas até travar completamente meus pés em uma das extremidades do corredor. Não sabia bem o que era, mas pude sentir meu coração palpitar em minha boca enquanto minha coluna era percorrida por um arrepio que crescia conforme minha respiração tornava-se mais lenta e profunda. O grave que entrava em sintonia com meu corpo reverberava da última porta à esquerda. Vinha do quarto da irmã mais velha de meu amigo, mais precisamente.


À medida que me aproximava, podia apreciar melhor o espetáculo: lá estava ela, manuseando sua bela Les Paul tingida em azul-cobalto com traços verde-esmeralda. Sua mão deslizava pelo braço do instrumento como se fosse uma pluma, produzindo um som quente e melódico. Seus olhos permaneciam fechados como se estivesse em sono profundo. Seu quadril requebrava em um movimento pendular ao ritmo da música, enquanto um sorriso de Duchenne estampava-se em seu rosto ao transitar pelos campos harmônicos. Dizem que nenhuma música é ensaiada da mesma forma duas vezes, porque o musicista conecta-se com a obra de uma forma diferente em cada ensaio. Naquele momento, ela e a guitarra eram um só.


A cena pode ter durado segundos, de fato. Porém, internalizei aquela experiência com todas as forças que tive, transformando aquilo em um ensinamento. Foi assim que aprendi que despertar a paixão no público é importante, mas, antes disso, é necessário despertar uma paixão muito maior em si próprio. Lição essa que nenhum professor, nenhum show e nenhum Malcolm Young haviam me ensinado. Assim, a aula de música veio a ser o ponto alto da semana, muito mais por representar a busca por uma paixão interior do que por continuar a busca pela paixão dos outros.


Que jeito bonito de terminar o parágrafo, não é mesmo? Mas segure as pontas, meu caro leitor. Como estava dizendo, nem tudo são flores.


2010


We all live in a yellow submarine

Yellow submarine

Yellow submarine”


“We all live in a yellow submarine

Yellow submarine yellow submarine”

“We all live in a yellow submarine yellow submarine yellow submarine”

Weallliveinayellowsubmarineyellowsubmarineyellowsubmarine we all live in a..... in a........

ONDE?

Enquanto forçava meus neurônios a me lembrarem mais e mais daquele maldito submarino amarelo, meu estômago se contorcia e clamava por misericórdia. A iluminação delicada e esmaecida do bar em que estava me fazia acreditar que, a qualquer momento, cairia com a testa na mesa e encerraria a noite com o homem ao lado comentando casualmente “Mas olha só, não é que o garoto apagou mesmo?”. É até engraçado, pensando bem. Para o guitarrista da banda, saber a letra da canção a ser tocada é algo tão fundamental quanto saber se minha tia, a única pessoa dançando em frente ao palco, estaria fazendo aquilo por pura diversão, ou se queria me punir por tê-la apresentado às pessoas como sendo minha avó. Enfim, repetir incessantemente aquele mantra era uma tentativa desesperada de me acalmar, além de impedir que o nervosismo e a ansiedade, normais de qualquer apresentação, me fizessem esquecer até mesmo qual música iria tocar.


Mas essa não era qualquer apresentação, não. Era minha primeira apresentação. Era A apresentação! A minha primeira apresentação desde que começara aquilo tudo dois anos antes. A apresentação a que boa parte de minha família assistiria. A apresentação em que eu era o mais jovem do local, era um dos poucos com menos de dezesseis anos e era o único menor de idade do grupo. Bem... quero dizer… pelo amor de Deus, Marcelo! Arrume mais alunos que sejam crianças! Aqueles caras barbados me davam calafrios…


Finalmente, o momento chegou! A sensação de subir os inacabáveis cinco degraus que davam acesso ao palco pintavam tons de palidez cada vez mais gritantes em meu rosto. A dormência em minhas mãos fazia com que a guitarra escorregasse alguns centímetros a cada passo dado. A plateia estava mais próxima do que eu imaginava!

“E se eu errar? “


“E se eu travar? "


“Será que me perdoariam? "


“Será que me vaiariam?”


“Não sou bom o suficiente!”


“Deveria dar espaço

a alguém mais experiente!”



“Tia, por tudo que é sagrado, pare!

A música ainda nem começou!”


Muitos eram os pensamentos naquele carrossel de alucinações. Entretanto, estranhamente, um deles destacou-se e inibiu todos os outros: a cor azul. Isso mesmo. Quando o baterista iniciou a contagem, meu imaginário subitamente foi preenchido por diversas figuras abstratas de coloração azul, que variavam em formato e tonalidade. A princípio, não consegui compreender o que estava acontecendo. Se era um mecanismo de defesa do meu cérebro para toda aquela ansiedade ou o início de um pequeno AVC, só poderia afirmar com certeza minutos depois, quando retornei do transe na metade da música e a plateia estava cantando em coro sobre o tal submarino amarelo. Mais tarde, acabei descobrindo que tenho uma tendência a associar fragmentos dos arranjos que aprendo a cores e figuras, quase como uma técnica mnemônica para me guiar pela canção. É um tanto estranho, admito, mas, como disse, há infinitas maneiras de se conectar à obra, não é mesmo? Então lá estava eu, tocando em cima do palco enquanto pintava um quadro em minha mente, quadro esse que já havia pintado inúmeras vezes sem nem saber de sua existência.


Definitivamente, performar diante de desconhecidos, rompendo com a inércia de o fazer apenas para aqueles com quem você sente segurança e liberdade, é um passo gigantesco — se não puder ser chamado de salto. Porém, por mais que a experiência tenha sido enriquecedora, ainda não era o suficiente. Barreiras ainda deveriam ser superadas...


2012

— Quero entrar para a banda do colégio!

Sério? Acho que precisa tocar muito bem pra conseguir isso…

2013

“Quero entrar para a banda do colégio. Só preciso praticar um pouco mais… eu acho…”

“Penso em entrar para a banda do colégio, algum dia. A gente vê…”

2014

“A banda do colégio parece ser legal. Pena que não é para mim…”

“Eu? Na banda do colégio? Hahaha, nunca. Nem sei tocar direito…”


Meu Fundamental II foi aquela fase meio “série adolescente” em que todo mundo já ficou preso por um tempo. É aquele momento em que seu horizonte parece sair de um ponto para virar todos os caracteres do alfabeto em uma tacada só. E, é claro, você é presenteado com trocentas preocupações novas que antes passavam despercebidas: socializar; fazer novas amizades; lidar com o bullying; falar com garotas; tentar não tropeçar na autoestima; lidar com o bullying; parecer alegre ao chegar em casa, mesmo sentindo-se um lixo; conviver com a constante falta de ânimo; lidar com o bendito do bullying


Enfim, uma fase que chamava carinhosamente de “esconde-esconde”. Quanto mais tempo eu passasse sem as pessoas lembrarem que eu estava ali, melhor. Acontece que isso, por afetar minha autopercepção, também afetava minha relação com a música. Afinal, por que fazer algo se você mesmo já se convenceu de que não é bom o suficiente? Por que praticar horas por dia se seus poucos minutos semanais te colocariam no mesmíssimo nível em que está? Por que buscar melhorar se você é incapaz de atingir sua melhor performance? Portanto, apesar de ter um desejo muito grande de explorar o espaço musical da minha escola, errar naquele quesito poderia ser a despedida dos minutos de sossego que restavam naquele ambiente, e talvez ser o encerramento de minha participação no mundo da música.


Mas se acalme, meu nobre leitor e minha nobre leitora. O texto de terapia vai ter que ficar para um outro dia. As preces foram atendidas e o santo Jimi Hendrix deixou uma pequena surpresa para me tirar do fundo do poço…


2015 e 2016

— Foi mal, é que eu não consigo entender! Você pode repetir?


Não! Já te expliquei umas três vezes só nessa semana. Deu!


— Tá bom, tá bom! É que… bem… recapitulando… seu pai é guitarrista, então já teria disponível todo o equipamento necessário e mais um pouco; seu gênero musical favorito é rock, e não jazz; definitivamente não acho que você esteja passando por uma crise da meia idade e, apesar de tudo isso, quer tocar… baixo?


É, isso mesmo.


— Desculpa, eu ainda não entendi. Tem como a gente tentar de novo?


Passei bons momentos do ano de 2015 falando com um amigo meu sobre bandas e artistas, pelo fato de termos gostos muito parecidos. Seu cantor favorito era Kurt Cobain, que estava mais para uma segunda personalidade, já que havia dias em que se vestia igual a ele e apreciava o apelido “Cobain”. Eu até era fã, mas preferia Robert Plant, vocalista do Led Zeppelin — meu grupo do coração, mas uma das bandas menos apreciadas por ele. Claramente, tínhamos nossas diferenças. Mas aquilo… aquilo não entrava em minha cabeça! Baixo, sério? Mal sabia eu que alguns anos depois compraria um baixo porque estava numa fase muito Red Hot Chilli Peppers... mas isso não vem ao caso!


Entretanto, as coisas acabaram enveredando por um novo rumo tão rapidamente que não pude nem imaginar. Foi no final de 2015 que descobrimos que a biblioteca de nossa escola ia muito além de uma mera exposição de objetos desinteressantes com textos em seu interior e de um esconderijo para os casais do Ensino Médio terem mais privacidade em seus encontros. Aquele havia sido o local escolhido para guardar os dois violões que a escola disponibilizava para os alunos tocarem em seu tempo livre.


Com essa descoberta, só havia uma reação possível para um pré-adolescente ansioso e indeciso como eu: pânico. A vontade de sequestrar um deles e ficar horas a fio brincando de tirar um som era incomensurável, ao mesmo tempo que o medo de ser pego pelos outros alunos e ainda ter que dar uma “palinha” de alguma canção me aterrorizava. Então, num dia qualquer em que me senti ousado e rebelde, decidi buscar um desses violões, para assim convencer meu amigo de que ele estava errado e que deveria abandonar a ideia besta de comprar aquela bugiganga de quatro cordas. No início, ele ficou meio relutante, mas como estava de bom humor, acabou topando a experiência que propus. Assim, no dia seguinte, em vez de buscarmos somente aquele violão, acabamos levando os dois, já que o desafiara a aprender alguma música nesses últimos meses que teríamos antes das férias de fim de ano.


Para lhe poupar dos detalhes dessa experiência, a qual poderia passar horas falando a respeito, pulemos para a parte que nos interessa. O que começou com dois amigos reunidos no bosque da escola, tentando curtir um pouco a simples presença de alguns instrumentos, acabou virando uma roda de amigos, que crescia cada vez mais e criava um senso de pertencimento que eu nunca havia vivenciado. Com isso, o ano de 2016 foi repleto de encontros musicais nos intervalos das aulas, fazendo com que eu percebesse que toda oportunidade perdida de tocar com outras pessoas, ou para uma plateia, seria uma oportunidade de crescimento pessoal desperdiçada.


Tendo isso em mente, assim que ingressei na escola em que cursaria meu Ensino Médio, decidi que me reinventaria, buscando corrigir os principais erros que cometera na escola anterior. Dessa forma, pude formar memórias ao longo desses três anos. E no seguinte. E no outro também. Enfim, muitas memórias...



2017

— É sério que tem por volta de 800 pessoas na plateia neste exato momento?!

— Sim! O colégio tem muitos alunos… infelizmente, só esse número coube no auditório.

— Certo…me deseje sorte!


— Eii, tem um violão guardado lá embaixo!

Me mostra aquela música que você disse que sabia tocar?

2018

—Voz e violão?!?! Eu desafino até na hora de cantar “Parabéns”. Posso só tocar.

— A música é um dueto! E temos uma semana para as audições. Então, se quiser apresentar na Audio Club, preciso de uma resposta agora!

— Tá bom, tá bom! … Vamos fazer isso acontecer.


— Essa música é para uma pessoa especial…

…quer namorar comigo?


2019

— Vamos encerrar mais cedo, o guitarrista da última banda não pôde comparecer

— Calma!!! Se me der alguns minutos, consigo substituir a parte dele!!

— O baixista da penúltima banda também está indisponível…

— Urgh… tá bom, vai…


2020

— Vocês conseguem me escutar sem o áudio travar? … ótimo!

… qual música querem ouvir agora?!

2021

— O vídeo de hoje é um cover….

…obrigado por assistirem!

2022

“Relato pessoal? Hmm… acho que se for fazer, tem que ser sobre algo especial. Música! Adoro música. Sem ela, não seria metade do que sou hoje. Mas não é o suficiente. Precisa ser algo real.”

O que quero dizer, meu paciente leitor, é que Guimarães Rosa estava certo. O violão, de fato, põe saudades na gente. Saudades grandes demais para caber em uma clave de sol. Saudades que hoje não existiriam, se não tivesse arriscado tentar virar um roqueiro irado, desses que fazem altos solos em cima do palco e quebram a guitarra ao final dos shows. Que não existiriam, se nunca tivesse me forçado a sair da zona de conforto e tocar em frente aos outros, mesmo minha tia fazendo de tudo para me impedir. Não existiriam, se tivesse permitido ser engolido pelo medo e pela desesperança.


Enfim, não sei o que me aguarda. Não sei que memórias ainda serei capaz de formar. Apenas sei que, independentemente das circunstâncias, lutarei para aproveitar as oportunidades que batem à minha porta. Se os resultados forem bons ou ruins, não importa: de qualquer maneira, serão ensinamentos que farão parte da minha coleção de saudades.


Autor: Rafael Diz Motooka


Revisão: Anna Cecília Serrano, Beatriz Nassar e Guilherme Caruso



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