Nossa redatora Isabella Grimaldi, compartilhou conosco uma reflexão e análise crítica da sociedade de desempenho. Como é a vida após fim da sociedade disciplinar?
Já diria o sociólogo contemporâneo sul-coreano Byung-Chul Han que, nos tempos modernos, a sociedade não é mais guiada pelos deveres, mas pela esgotante autocobrança. A sociedade disciplinar de Foucault foi gradualmente sendo substituída pela sociedade do desempenho, na qual os indivíduos se tornam escravos de si mesmos.
Os sujeitos dessa sociedade da modernidade não são mais meros reflexos de suas obrigações, mas são um complexo de iniciativa e produção. Espera-se que os indivíduos atinjam as metas impostas, sendo guiados única e exclusivamente pela sua proatividade e pelo seu poder ilimitado de agir. A sociedade do desempenho, portanto, é regida pela negatividade da proibição e da coerção externa, quer dizer, pela ausência do verbo “dever” e das vozes alheias falando no imperativo. Na modernidade, o poder ilimitado - do indivíduo com ele mesmo - é o verbo positivo que mostra o norte para as dinâmicas sociais.
A princípio, a derrubada da sociedade de Foucault parece ser um ponto positivo, construindo a ideia de que aquele ciclo exaustivo de obediência e alienação chegou a sua finitude. Embora a negatividade do dever seja o ponto central da sociedade do desempenho, é nela que surgem os fracassados e os deprimidos. Enquanto a sociedade da disciplina cria os loucos e os delinquentes, a sociedade do “não-dever” dá estímulo ao aparecimento dos frustrados e desiludidos.
A frustração e depressão decorrem da incapacidade do homem de assimilar a norma inerente à sociedade do desempenho. A norma é simples e altamente liberal: cada indivíduo deve se comprometer a tornar-se ele mesmo e atingir suas metas ou realizar suas eventuais tarefas somente com a sua vontade de fazê-lo. A norma parece tola e, seu cumprimento, automático; mas é justamente aí que se instala o centro de irradiações dos problemas da sociedade moderna.
Atualmente, ninguém mais sabe o que é, o que quer ser, o que pretende ser e o que acha que efetivamente será. Este é o efeito da modernidade líquida alertada por Bauman. Em tempos de extrema fluidez e volatilização de todo e qualquer tipo de relação inter-humanos, a mudança de vontades, metas e identidade é gritante, o que torna a vida do sujeito da sociedade do desempenho um verdadeiro inferno exaustivo. Por ele não conseguir se encontrar em si mesmo - nos seus pensamentos, nas suas ideologias, nos seus desejos e instintos -, ele acaba se afundando. O sujeito se afunda em si mesmo, no seu próprio vazio e não consegue sair, afinal de contas, não há deveres ou mandamentos nessa nova dinâmica social. Este é o início da depressão do indivíduo do desempenho. A depressão é, assim, nas palavras de Byung-Chul Han, “a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo”.
O problema que aterroriza os indivíduos da sociedade do não-dever é, paradoxalmente, essa liberdade de ser você mesmo. A pressão para ter o melhor desempenho ao obedecer somente a si mesmo é tão intensa que o sujeito desiste. No caso, ele desiste de si mesmo, de suas próprias iniciativas e projetos. Tudo porque é muito mais difícil lidar com a autocobrança do que com uma cobrança alheia, vinda de um terceiro que não faz ideia do que passa na cabeça daquele que recebe a ordem. Todo esse cenário gera ‘’infartos psíquicos’’, isto é, o esgotamento psicológico. No entanto, é irônico que, na sociedade do desempenho, o indivíduo não está exausto fisicamente por estar cumprindo excessivas obrigações delegadas por outros; ele está esgotado de si mesmo.
Tal esgotamento, que vem de dentro, cumulado com a liberdade que fomenta a conjuntura da sociedade do desempenho, concedem ao sujeito cansado o direito de não fazer nada, o direito de nunca mais fazer nada. E é isso que ele faz. Nada.
Percebe-se que acontece uma inversão de valores sociais e particulares quando estes infartos psíquicos vêm à tona. A sociedade do desempenho perde a sua utilidade principal, a sua essência de não impor deveres aos sujeitos, uma vez que, no estado de esgotamento, o indivíduo não tem desempenho algum. Sua proatividade é dilacerada e o seu tesão pelos seus projetos e metas perde-se no ar.
Então, o tal do desempenho é uma falácia. Não passa de um drible para mirar o alvo da culpa pela exaustão e alienação em outra pessoa, no caso, na própria pessoa ativa, que tentou controlar o seu “eu”. A sociedade do desempenho é, portanto, uma baita ilusão.
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