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SONHOS NÃO ENVELHECEM: OS 50 ANOS DO CLUBE DA ESQUINA




Poeira, na noite

A festa da noite

Guerreira, estrela da morte

Festa negra amor

Mas é tarde…


Muitos são os álbuns que, à medida que os anos passam, aparentam ter envelhecido, para o bem ou para o mal. Do outro lado, são poucos os álbuns em que não se vê nenhuma marca do tempo, soando assustadoramente atuais. No meio, em uma radiante zona tingida de tons sépia, existem algumas obras que, ao mesmo tempo que têm vestígios temporais inegáveis, soam excepcionalmente vivas no tempo presente. E Clube da Esquina, disco de 1972 do homônimo conjunto liderado por Milton Nascimento e Lô Borges, é um desses discos.


Formado em Belo Horizonte em meados dos anos 1960 – com o disco de mesmo nome completando 50 anos em março deste ano –, o Clube contava com outros músicos ilustres, como Beto Guedes, Wagner Tiso e Toninho Horta. Esse amálgama de talentos e suas sensibilidades próprias transparecem na estrutura do disco que, ao longo de 1 hora e 4 minutos, distribuídos em 21 faixas, corteja os mais variados gêneros e estruturas. Jazz, música regional, bolero, bossa nova, rock psicodélico: são muitos os ritmos trabalhados, não raramente dialogando entre si na mesma música. Para um trabalho com tanta variedade nas harmonias, torna-se inútil tentar definir a qual gênero pertence. Existe um incontestável cuidado em apurar ao máximo cada seção do disco, o que torna as melodias fins em si mesmas, e não só acessórias para as composições, mas justamente por sua complexidade, as melodias também acabam por construir um enquadramento singular para as narrativas de cada canção.


Entre violões fabulosamente rítmicos, orquestrações exuberantes e texturas sensoriais, são contadas histórias que, em seus tons de sépia, encontram-se em constante movimento, na impossibilidade de separar o passado do presente: em embarques e partidas, encontros e desencontros, amores possíveis e impossíveis. Não é coincidência que motes de trilhas e caminhos sejam recorrentes, como trens, estradas e cidades. Aqui, as alusões ao passado nunca partem de um prisma ultranostálgico, e sim da alegria em relembrar com um sorriso no rosto os momentos já findados, mas que nunca esqueceremos.


É impossível falar do Clube da Esquina sem falar de Milton Nascimento e Lô Borges; não fosse o cânone musical tão anglocentrado, sem dúvida a dupla seria lembrada como uma das melhores parcerias da história da música. Muito do brilhantismo do disco reside no fato de que, ao mesmo tempo que existe um entendimento musical mútuo evidente – a amizade dos dois sendo a prova máxima disso –, suas composições caminham para lados diferentes. O lado mais pop do disco, influenciado pelo rock dos anos 1960, é encampado por Lô, com as músicas "O Trem Azul", "Um Girassol da Cor do seu Cabelo" e "Paisagem da Janela" estando entre as mais famosas do álbum. Já as músicas assinadas por Milton – como "Cravo e Canela", "San Vicente" e "Um Gosto de Sol" –, apesar de partirem de ritmos mais tradicionais, como música folclórica e bossa nova, são imbuídas de ousadas arquiteturas sonoras, com letras primorosas e delicadas encontrando um conduto para suas singularidades na voz incomparável do cantor.



O ex-presidente Juscelino Kubitschek e os rapazes do Clube: uma fotografia mineira



Muito se pode analisar de um ponto de vista técnico, mas as grandes obras também são aquelas que, a partir de seus estímulos sensoriais, despertam-nos uma intensa reação emocional. Chega a ser superficial focar apenas na expertise técnica do disco quando seus grandes momentos são aqueles em que a poesia que permeia todo o álbum é alcançada como poucas vezes fora. Tomamos como exemplo os minutos finais de "Dos Cruces": uma história de amor e tragédia que termina em um crescendo de vozes dissonantes, uma percussão desesperada e guitarras que agonizam. Ou o fim de "Cais", que, após narrar sonhos de esperança em tempos de incerteza, se encerra com Milton dividido em um belíssimo dueto entre sua voz e seu piano.


Nesse sentido, poucas músicas possuem uma carga emocional tão intensa como "Clube da Esquina Nº2". Antecipada pela igualmente encantadora "Estrelas" – que tem um papel sublime (e subestimado) ao construir a atmosfera para a faixa que se segue –, "Clube da Esquina Nº2" está entre essas coisas da vida que se pode até buscar palavras para tentar entender, mas o magnetismo de seu mistério nos basta para nos impactar. Assim, não deixa de ser curioso que, mesmo existindo uma versão da canção contentando letra – que é igualmente mágica, podendo até ser considerada uma das composições mais bonitas da música brasileira –, a versão do álbum é puramente instrumental. São harmonias, sussurros e arranjos permeados por uma melancolia e uma beleza particulares, mas também por tons profundos da vida de uma gente, de uma nação, como se condensasse todos aromas, cores, paisagens, alegrias, incertezas e esperanças de um povo em alguns minutos de poesia tocada.


Um dos aspectos mais fascinantes do Clube da Esquina é possuir um brilhantismo muito específico ao enfatizar vislumbres de uma ambiguidade poética que nunca se torna superficial ou desmedida, sempre encontrando um tom preciso. Ao mesmo tempo que é presente uma abordagem sincera e desarmada, quase inocente, o que forja à obra um espírito muito honesto e afetuoso, é inegável que esta caminha lado a lado com uma maturidade que confere ao trabalho uma confiança muito evidente. É como se, mesmo que tivessem uma convicção muito grande em cada uma de suas músicas, no fundo, os músicos ali presentes continuassem sendo apenas meninos brincando com seus instrumentos.


"Não há nenhum documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie.", Walter Benjamin teria dito certa vez. Mesmo sendo uma obra intrinsecamente poética, o álbum não se exime de observar a violência existente na paisagem que descreve. Em "Trem de Doido", o irrompimento de guitarras intensas e psicodélicas funciona como um perfeito complemento à brutalidade do relato, que faz referência aos pacientes que eram mandados para o Hospital Colônia de Barbacena, um hospital psiquiátrico em Minas Gerais conhecido pelos abusos e maus-tratos aos pacientes. Tendo sido lançado no período da ditadura militar, o disco também lida com as angústias do momento em faixas como "Tudo Que Você Poderia Ser" e "Nada Será Como Antes", cujas composições ecoam o medo e os anseios da época.


Mesmo que naturalmente não seja a intenção, Clube da Esquina intui uma identidade brasileira como poucos discos. Seu posicionamento no cânone nacional, junto a outros trabalhos contemporâneos como Acabou Chorare e África Brasil, é de certa forma explicada por essa força simbólica. A partir de Minas Gerais – terra natal do coletivo cujas referências a seu povo, paisagens e história são inúmeras, mesmo que em uma chave alegórica – se concebem ricos arranjos posicionados entre múltiplas camadas de história brasileira, cuja potência ecoa no ouvinte especialmente pela chave da identificação: são os da nossa terra cantando e tocando, falando da gente, da nossa nação.


A importância desse disco para a música brasileira é também explicada por uma certa disposição temporal. Talvez a década mais célebre para nossa produção musical, junto aos anos 1960, os anos 1970 foram marcados por uma série de álbuns do mais alto calibre que, cada um ao seu modo, buscavam estabelecer uma série de diálogos com aspectos da nossa história e sociedade, tentando entender, afinal, o que é o Brasil. No já citado África Brasil, por exemplo, Jorge Ben Jor constrói um leque de referências à cultura afro-brasileira infundidas com influências de gêneros estrangeiros. No caso do Clube da Esquina, também é notável a fusão de influências regionais e estrangeiras, o que se observa na captura que se faz de um país que ainda se encontrava em uma encruzilhada entre o rural e o urbano. As narrativas de hesitação, dúvida e despedida alastradas pelas composições do disco também são retrato de uma nação em um momento de transição histórica, marcada pelas angústias do período ditatorial.


Poucas vezes a música foi tão ambiciosa e natural como foi em 1972. Tendo uma grande legião de fãs, incluindo estrangeiros que vêm descobrindo o álbum mais recentemente, fascinados pela autenticidade de seu som, seu apelo pode ser tomado como trivial, de tão analisado. Todavia, mesmo depois de 50 anos, Clube da Esquina continua como um dos grandes álbuns da música brasileira, revelando a cada nova audição inéditas camadas de beleza e poesia, ao mesmo tempo que seus mistérios permanecem imaculados.




Autoria: João Pedro Fernandes

Revisão: Bruna Ballestero e Guilherme Caruso

Imagem de capa: Cafi / Reprodução: Folha de São Paulo

Imagem 1: Reprodução: Divulgação





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