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SOZINHO



Ouço meu alarme gritar no meu ouvido, estridente.


É hora de acordar.


Calo a cacofonia aguda sendo emitida pelo meu celular, respiro fundo e afasto minhas cobertas. Não tenho certeza se estava sonhando com algo. Talvez sim. Não que eu me lembre agora, o que faz com que não importe tanto.


Levanto-me, espreguiço-me e abro a janela, que guincha em protesto. No entanto, após a queixa da minha janela dramática, não se escuta som algum, e o mundo lá fora está imerso em um silêncio sepulcral. Há uma semana atrás, isso seria bem esquisito. Eu estaria ouvindo, no mínimo, o fraco murmúrio de pessoas conversando na rua, buzinas e o singrar dos pneus dos infinitos carros dessa cidade pelo asfalto antes mesmo de abrir a janela. Agora, o silêncio é a norma.


Isso porque eu sou o último homem do mundo.


Ou a única pessoa, que também serve. Não sei, ainda não me decidi sobre meu título oficial.


Tiro meu pijama e coloco uma calça e uma camiseta que julgo ornarem suficientemente bem – a moda ainda não morreu – e em seguida prossigo para a sala, onde tomo meu café da manhã enquanto faço minha nova atividade preferida: TV do Fim do Mundo – que é como a chamo atualmente. Consiste em ligar a televisão e procurar o que está passando nos canais. Alguns simplesmente estão fora do ar e exibem apenas uma estática silenciosa – muito respeitoso ao ambiente lá fora –, mas alguns ainda resistem. Meu preferido é um noticiário que transmite, o dia todo, uma gravação do local onde o âncora ficaria. Vejo uma mesa larga com o logo da emissora, uma tela pendurada no teto e, atrás, uma janelona com vista para uma avenida movimentada – ou melhor, que seria movimentada, se não fosse o Fim do Mundo.


Como observando essa cena. Desafio o cenário a mudar, desafio um carro a passar ali na avenida, desafio o âncora a chegar ajeitando as calças, pedindo desculpas pela demora: ele só estava no banheiro. Mas nada muda, assim como nos últimos dias.


Esse é o Fim do Mundo. Quer dizer, ao menos para os humanos. Na verdade, acho que o mundo vai até agradecer por ter se livrado da gente. "Gente", no caso, não me inclui, aparentemente.


Coloco a mochila nas costas, abro a porta e desço pela escada (Já não confio mais nos elevadores, vai saber).


Eu sei, eu sei, a pergunta óbvia é a de como isso foi acontecer. Bom, o porquê eu não faço a mínima ideia e o como não tem graça nenhuma. Não foi igual aquele filme com o Fábio Porchat, Entre Abelhas, no qual as pessoas começam a sumir lentamente para o protagonista, às vezes bem na frente dele. Na semana passada, eu simplesmente acordei com o urro do meu alarme e, ao abrir aquela janela guinchante, me deparei com um silêncio tão espesso que cheguei a pensar que todos esses anos ouvindo música alta no fone de ouvido tinham vindo cobrar seu preço, mas a ausência de vivalma nas ruas me tirou do meu devaneio. Todo mundo sumiu de uma vez, de repente.


Sempre me perguntei o significado desse filme do Porchat, é uma daquelas produções meio filosóficas e crípticas que você tem certeza de que contém uma mensagem específica, mas não consegue saber exatamente qual. Bom, você não, “você” nem existe, se eu for parar para pensar.

Saio para a rua e começo a andar para a faculdade, já que o transporte público não funciona sem a parte do público. Não é que estou com medo de receber falta, os professores não estarão lá para fazer a chamada – mesmo se um estivesse, aluno nenhum a responderia –, mas gosto da rotina. Talvez seja por conta dela que ainda não enlouqueci. Ou talvez eu só esteja esperando que um dia desses eu vá encontrar a sala cheia dos meus antigos colegas e da sinfonia criada por uma miríade de conversas díspares. Talvez seja saudade. O que é engraçado de se pensar, já que eu nem conhecia a maioria das pessoas. Nós – e agora só eu – vivemos nossas vidas sem saber o que alguém que se senta ao nosso lado todos os dias sente, pensa e faz. Enfim, não sei por que vou, mas vou.


Estou caminhando por aquela grande avenida que faz figuração no noticiário do Fim do Mundo, imaginando-me apenas um pontinho deslizando pela tela da TV, caso ainda existisse alguém para assistir. Antigamente, a rua estaria congestionada com carros, ônibus e motos, enquanto a calçada estaria inundada de pedestres trabalhando, comprando e conversando. Hoje em dia (e para sempre?), ela está completamente deserta, e não há nem automóveis abandonados, como se o que quer que tenha sumido com todos tivesse pegado todo mundo de surpresa antes mesmo de poderem sair para o trabalho.


Todo mundo menos eu.


Cheguei na faculdade e aqui ficarei durante o mesmo tempo que ficaria uma semana atrás, antes do Fim do Mundo. Seguir o cronograma antigo é algo que também me ajuda a me manter são, como se aquela tabela de horários me conectasse aos funcionários da secretaria que a haviam elaborado, enquanto ainda existiam; uma conexão com alguém. Eu sei, seguir regras colocadas por uma pessoa desconhecida não é exatamente o que vem à mente quando se imagina totalmente livre de qualquer amarra social. Acredite, não era o que eu imaginava também. Em contrapartida, eu não pensei que 8 bilhões de pessoas simplesmente evaporariam de um dia para o outro, então realmente não sei o que esperar.


Falando em pensamentos e imaginações, venho me questionando se isso é real, de fato. Talvez os infinitos trabalhos e provas da faculdade finalmente me enlouqueceram, e eu estou trancafiado em alguma cela almofadada em um hospício no interior. Ou, então, não foram os outros que sumiram, mas sim eu que desapareci para todo mundo.


Olho para o relógio, coloco minha mala nas costas e saio, partindo de volta para casa.


Essa última teoria tem me atormentado um pouco, confesso. Se isso aconteceu, como faço para aparecer de novo? Ou meu destino será eternamente acordar, ver a TV do Fim do Mundo – que nesse caso estaria mais para TV do Fim de Mim – e ir para a faculdade? Bom, imagino que daqui uns anos eu teria que achar um trabalho, e começar a frequentar algum prédio chique do distrito financeiro, ouvi que dá muito dinheiro. O que você acha?


Bom, no caso você não acha nada, porque você nem existe. Sem ofensas, claro.




Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: Anna Cecília Serrano e Laura Freitas

Imagem de capa: Night Shadows (Edward Hopper, 1921)


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