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São Paulo: infinitas possibilidades de encontros insignificantes

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São Paulo está em um estado constante de sonambulismo, no limiar entre o sono e o sonho — onde a exaustão física e a euforia febril se mesclam e movimentam a metrópole freneticamente. A nuance entre o dia e a noite se dá por um degradê de cores quentes e frias, uma vez que o adormecer e o acordar da cidade não se sucedem conforme o movimento do sol no céu. Não há pausa, só o presente. 


Sob o suor e o asfalto paulistano, há uma cidade cheia de contrastes: sociais, culturais e econômicos, em que o choque entre as mais diversas classes, estilos e cores constrói narrativas únicas e divergentes. O caos criativo das ruas — grafite nos prédios, pichações nas paredes, adesivos nos postes (desde “Palestina Livre” até “Cannabis Salva Vidas”) — contrasta com a arte domesticada dos museus; da Ecologia de Monet à Pop Art de Warhol.  


O calor claustrofóbico provocado pela aglutinação de pessoas no metrô no horário de pico — ombro a ombro, suvacos transpirando e você ainda encosta na mão de um estranho quando vai pegar na alça — e o frio deprimente que faz às cinco da manhã enquanto você espera o Uber de minissaia, meio grogue de sono e álcool. As memórias flutuando em algum lugar da cabeça atrás da consciência. A emergência dos trabalhadores e a letargia de usuários. As ambições capitalistas e os amores líquidos. 


Milhões de habitantes contam mais que milhões de histórias, mesmo que a falta de intimidade inerente a essa cidade imensa exija uma dose de imaginação de um observador entediado. E é por isso que, apesar das pombas, eu adoro São Paulo. 


No ônibus, sentados de mãos dadas, a intimidade do toque entre um casal jovem desenha o esboço de um futuro feliz. O cobrador está dormindo; uma universitária está lendo Dom Casmurro. Ele abre os olhos de vez em quando, num estado de semi-vigília; ela faz anotações nas margens, que saem tremidas. O céu é coberto por uma camada densa de umidade, de modo que as pessoas que caminham na rua apresentam um semblante fantasmagórico, engolido por olheiras e sombras. 


Quando eu era criança, gostava de personificar as nuvens, imaginar que eram elefantes, dragões ou zumbis. Durante longas viagens de carro eu ficava encostada na janela, sonhando até pegar no sono. Agora, às sete da manhã de uma quarta, enquanto vou para a faculdade de ônibus, eu forço a criatividade para personificar os prédios da Avenida Paulista. Vejo um pendrive gigante. Imagino que, por trás das janelinhas de vidro, existem miniaturas de roupa social digitando freneticamente no computador ou pegando um cafezinho, como se fossem apenas um conjunto de algarismos que efetuam ações codificadas. Numa freada brusca, quase cuspo o meu café. Estou aprendendo aos poucos a controlar a inércia. Aos poucos. 


No ponto de ônibus tem uma pessoa sentada, meio andrógina e melancólica fumando um cigarro. A fumaça que foge dos seus lábios forma uma máscara que, volátil, se reduz ao ar. A pessoa observa alguns anônimos subirem no meu ônibus enquanto derruba as cinzas no chão com um movimento delicado do pulso; depois se levanta e vai embora, balançando as correntes penduradas na calça jeans. 


Esse “não-encontro” me lembrou do conto Amor da Clarice Lispector, quando a personagem vê um homem cego mascando chicles no momento em que o bonde estaca. A observadora entra em espiral, talvez por conta da impassividade audaciosa do homem cego que é, naturalmente: “sem sofrimento, com os olhos abertos” enquanto “mastigava goma na escuridão”. O que está por trás da nossa máscara social, da camada de fumaça? Nos falta coragem para encarar a vida cegamente, enquanto mascamos chiclete. 


O ônibus sai com um tranco e percebo que um menino bonito desceu na última parada. Aparentemente, não existe amor em SP. Somos tragados pelo ralo com o decorrer do dia a dia, e nossos relacionamentos ficam rasos como as poças de chuva. Basta uma mudança na rotina, ocorre uma ruptura. Mas não sentimos certo conforto no anonimato? Podemos olhar sem sermos vistos, como quem cultiva uma paixão platônica. Há uma mistura de frustração e alívio na falta de reciprocidade. Afinal, o que acontece quando dois anônimos se encaram — ou pior, quando eles se encontram um no outro? Um destino em comum ou um completo desastre. E quando o universo não ajuda: outro “não-encontro”. São Paulo está cheio desses. Pessoas que você tromba e nunca mais vai ver na vida, que você observa e imagina uma história de amor absurda… escuta uma fofoca, dá bom dia, fala do clima. O tempo passa e você esquece. 


Quando chego na minha parada tenho que pular as pombas na calçada. Sobe um cheiro forte de fruta. De manhãzinha vendem café da manhã em alguns pontos da Paulista; tem bolo de laranja e pão francês. Os homens que estão quebrando a calçada na Itapeva fazem uma pausa e, em roda, comem sanduíches e dão risada. 


As pombas são seres psicóticos. Tenho a teoria de que a insalubridade paulistana corroborou para a seleção natural daquelas mais aptas à sobrevivência em meio à correnteza de carros, pessoas e sei lá o quê. Elas nunca se assustam, juro. Por sua conta e risco, tente correr atrás de uma pomba paulistana para ver o que acontece. Talvez a única coisa mais sinistra do que caminhar pela Avenida Paulista desviando das pombas seja aquela cena em Hereditário em que a menina corta a cabeça de uma pomba com uma tesoura. Justiça poética, eu acho. 


Individualmente sou insignificante. Vou andando e nada acontece, assim como todos ao meu redor estão andando e parece que nada acontece com eles. Acho que, afinal, não temos livre-arbítrio, somos anônimos ambiciosos por dinheiro, amor e significado — não temos escolha. A suposta infinitude desse fluxo de gente e a certeza trágica de que todas essas mesmas pessoas vão acordar no dia seguinte e provavelmente seguir a mesma rotina, com poucas variações — inclusive eu — faz eu me sentir, ao mesmo tempo, como um ser insignificante e infinito.


Amanhã, assim como hoje e anteontem, será repleto de “não-encontros” fugazes, desencontros desconhecidos e futuros idealizados pela força criativa do tédio. São Paulo continuará uma cidade sonâmbula — enquanto uns dormem em pé, outros sonham acordados. Eu passo pela catraca e entro no prédio da faculdade. 


Autoria: Julia Santos 

Revisão: Giovana Rodrigues, Pedro Anelli 

Imagem da capa: Pinterest


 
 
 

1 comentário


marilzaolicarv
31 de jul.

Ótimo texto. Muito bem escrito e abrangência no nosso dia a dia, com alegrias, tristezas, dúvidas e certezas.

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