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TRISTE GIRASSOL

Neste belíssimo texto, nosso redator Neste belíssimo texto, nosso redator Felipe Takehara aborda a efemeridade da vida, os sinais silenciosos da dor de uma pessoa, e o impacto que uma perda terrível causa em nós.

Esqueci-me da colher de cabo cinza. Era a preferida de Manu – sempre comia suas sobremesas com ela. Já perdi as contas de quantas vezes Papai teve de separar nossas brigas por ela, quando éramos pequenos. Acho que a escolhia apenas para irritar Manu. Que saudade daqueles tempos, das manhãs quentes de verão, de caminhar com Manu no campo dos girassóis. Ah, que saudades de Manu!


Mas me esqueci: como pude? Coloquei a colher justo no lugar em que Papai se senta. Quando a viu, não conseguiu permanecer, logo saiu da mesa. Como pude ser tão cruel? Papai ainda não superou sua morte (será que algum dia poderia?). Vi uma lágrima escorrer de seu rosto.Não consegui terminar minha panna cotta. Papai sequer tocou a dele. Fiz a sobremesa com tanto carinho, esperando que fosse alegrar o seu dia – ao contrário! Ele gostava das minhas sobremesas, sobretudo da panna cotta: dizia que a preparava melhor do que Mamãe. Não acredito que fui tão estúpida. Logo aquela colher, justo no lugar de Papai...


Faz um ano que Manu morreu. Os médicos da cidade diziam que não havia nada de errado com ele, ao menos fisicamente. Manu estava apático, dormia muito, passava os dias em seu quarto. Quando saía, seu olhar era estéril, fitava o nada com uma obstinação indiferente. Receitaram uns remédios que não fizeram muito bem a Manu. Lembro-me dele reclamar que lhe provocaram úlceras no estômago. Depois disso ele desanimou de vez.A última vez que o vi ele estava discutindo com Mamãe. Manu estava nervoso. Espantei-me com a pergunta que lhe fizera: se o seu amor por ele realmente existia – Mamãe chorava! Como um filho é capaz de fazer à própria mãe uma pergunta dessas? O sacrifício, os beijos, os abraços, o estar lá quando precisávamos – todo o carinho de nossos pais tornara-se invisível para ele? Manu questionava o amor de nossos pais.


Por que? O que leva um filho a pensar uma coisa dessas sobre os próprios pais? O amor familiar, atávico – necessariamente recíproco – entre pais e filhos, como questionar maior certeza do que essa? Que tempos são esses meu Deus? Que costumes!


Foi numa manhã de domingo. Voltávamos da missa. Manu não foi conosco, disse que suas úlceras o incomodavam muito, que iria ficar em casa. Estava na cozinha quando ouvi o grito de Mamãe – estremeci. Manu havia se enforcado em seu quarto.


Ele deixou uma carta que até hoje não consegui terminar. Falava sobre como as coisas haviam perdido sentido para ele, que a vida, a liberdade, Deus, e os amigos haviam se tornado como fantasmas, “manchas que alvejavam o real”, ele escreveu. Que os nossos rostos, o meu, de Papai e Mamãe se tornaram para ele abstrações – que o nosso amor havia se tornado uma abstração. Perdemos Mamãe no dia seguinte.


Arrumei a mesa. Acho que vou jogar o resto da panna cotta no lixo. Papai não terá mais vontade de comer. Ele foi ao jardim, está trabalhando num arranjo de azaleias que encomendaram da cidade. A jardinagem o faz esquecer desses momentos ruins. Ainda não consegui encontrar algo para mim. Sempre sinto saudades, sempre me lembro dos rostos de Manu e de Mamãe. Lembrar do cálido abraço de Manu me faz chorar. Preciso esquecer. Preciso superar. Coloquei, para o bem de Papai, a colher de cabo cinza na última gaveta do armário, onde ficam as coisas esquecidas, junto com os rosários. Quando fico triste, saio de casa para respirar melhor, ver as flores do lado de fora, sentir o sol em meu rosto. Ainda hoje eu caminho sobre o campo dos girassóis, mas sozinha.aborda a efemeridade da vida, os sinais silenciosos da dor de uma pessoa, e o impacto que uma perda terrível causa em nós.


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