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UM CASO DE LITERATURA



Entre as prateleiras da histórica biblioteca da Fundação, esquecido em meio às páginas amareladas de um velho livro, um pedaço de papel caiu. Sem nome, apenas um pedido: socorro.


Abri o livro-correio às pressas em busca de um diagnóstico. Não era sobre Cálculo, Econometria ou Direito Administrativo. Livros assim seriam apáticos demais para lidar com tema tão delicado. Tratava-se de um caso de literatura.


Fosse qualquer outro livro, bastava sair perguntando pelos corredores. Afinal, é comum se matar pelas matérias patéticas da faculdade. Deixar um pedido de socorro dentro de um livro técnico não representaria mais que desespero antes de uma prova. Tratando-se de literatura, porém, as coisas eram diferentes. Essa espécie rara de criação artística se mistura com a alma de quem a aprecia. Ao ler de coração aberto, nosso sangue se torna poesia.

Então, quem o escreveu?


Poderia ser um Dom Quixote qualquer, pedindo ao Sancho Pança que encontrasse a mensagem, que a levasse à Doña Dulcineia del Toboso escondida em alguma sala da EDESP, da USP ou da UnB. Insanidade sintomática de tanto ler e pouco dormir. Cotidiana vida universitária.


Poderia ser um jovem Werther também, deixando uma última correspondência ao seu caro Wilheim antes de estourar os próprios miolos. O cadáver, onde está? Primeiro, segundo, quinto ou sétimo andar? Ainda respira para voltar aqui amanhã às 7h?


Ora, é óbvio! A resposta deve estar no próprio livro mensageiro! Basta olhar a capa e… está em branco. Vejo o título, vejo o autor, vejo a história carregada em suas páginas, mas sei que não encontrarei quem busco ali. Não vejo o autor do bilhete, mas algo me diz que já o conheço. Não sei seu nome, não sei seu rosto, não sei sua história, mas o conheço!


Conheço a sensação de estar à parte do mundo, de jamais se sentir igual aos seus iguais, de se sentir – e de fato ser – um estranho para si mesmo. A trágica sensação de se sentir vivo somente na literatura. Viver-pensar por longos anos e perceber que todo diálogo que já teve em sua existência, na verdade, foi um mero solilóquio. Como eu queria ter nascido um verso! Como queria que tu tivestes nascido um poema!


Se serve de consolo, autor do misterioso bilhete, fique feliz. Nesse momento, tu atingiste o teu mais profundo desejo. Aqui e agora, tu te tornaste literatura.


Essa historieta é baseada em fatos reais. Há um ano, um pequeno pedido de socorro foi encontrado entre os livros intocados da biblioteca da FGV-EAESP. Em poucas palavras, o autor lamentava não se sentir pertencido à faculdade e como isso o entristecia. O autor do pequeno bilhete permanece desconhecido, tal qual seu paradeiro. Que a literatura o tenha.


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Autoria: Arthur D’Antas

Revisão: Anna Cecília e Gabriela Veit

Imagem de capa: Estevão E. in Foursquare




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