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UMA HISTÓRIA BRASILEIRA DA LOUCURA: BICHO DE SETE CABEÇAS





Saturno devorando seu filho, Francisco Goya (1746-1828)

“Não tem ninguém que mereça, não tem coração que esqueça”¹


Até o início dos anos 2000, havia cerca de 50 mil leitos psiquiátricos no Brasil². Neles, alcoólatras, homossexuais, epilépticos, esquizofrênicos, prostitutas e viciados se confundiam. Submetidos a um regime que até então servia apenas para conter e excluir, a preocupação de curar e reintegrar era apenas pretexto para uma indústria que muito faturava². Nesse contexto, o filme Bicho de Sete Cabeças (2001), dirigido por Laís Bodanzky e roteirizado por Luiz Bolognesi, é o retrato de um Brasil que insistia em converter tudo aquilo que era adverso aos olhos da sociedade em doença ou crime.


Baseado no livro autobiográfico Canto dos Malditos, de Austregésilo Bueno, o longa narra um fragmento da história de Neto (Rodrigo Santoro), um estudante que, após ser flagrado por seu pai, Wilson Souza (Othon Bastos), com um cigarro de maconha em seu casaco, é internado em um hospital psiquiátrico em São Paulo. Lá, o jovem será inserido num sistema que parece o catalogar mais como prisioneiro do que como paciente, o que acaba provocando comportamentos de revolta que por sua vez aumentarão cada vez mais os “indícios” de que o “tratamento” e a permanência no local são necessários.


Ambientado com suas paredes sujas e descascadas que remetem ao abandono pela instituição manicomial (que naquela época eram, em sua maioria, privadas 3 e subsidiadas em partes pelo Estado), o local é um símbolo de onde a humanidade e a empatia são suprimidas devido à condição de insanidade atribuída aos detentos. Em certo momento da narrativa, quando Neto questiona o motivo de sua internação, este é respondido com um “Ele (seu pai) e sua mãe disseram que é viciado” pelo enfermeiro-chefe (Luis Miranda), demonstrando que o diagnóstico da dependência não depende essencialmente de uma medicina ou psicologia, mas das figuras de normalidade criadas pela sociedade que, em geral, flertam com uma lógica capitalista de saúde que toma o indivíduo produtivo como o saudável. Não obstante, os muros excessivamente altos, além dos enfermeiros sempre hostis e interventores, colaboram para que um ambiente de coerção violenta seja instaurado, onde um traumatismo craniano torna-se justificável como método de contenção dos “pacientes”. Assim, cria-se uma tensão onde pacientes e presos, tratamento e punição, confundem-se, criando um modus operandi que parece ter o efeito oposto, tornando qualquer “são” em “louco”.


E por que faço questão de colocar aspas em “são” e “louco”? Pois tais categorias são colocadas em que xeque, uma vez que o único médico do hospital (Jairo Mattos), o qual supostamente deveria ser um modelo de normalidade, e cuja função não é tratar os internos, mas cuidar de possíveis incidentes, é flagrado como alcoólatra (patologia esta já normalizada e absorvida pelo sistema) ao avistar os detentos enquanto bebe um farto gole de Whisky em seu consultório. Por outro lado, contrastando, temos Ceará, amigo de Neto e interno, brilhantemente interpretado por Gero Camilo, que mescla perfeitamente a singularidade de não conseguir se comunicar à nossa maneira com a insanidade de ser sensível, demonstrando cuidado e preocupação em um ambiente extremamente opressor, o que nos mostra que seu comportamento se aproxima mais do estatuto de humanidade que o do próprio médico.


Com efeito, questiona-se: quem de fato é o doente? Tal dialética da loucura foi comicamente abordada por Machado de Assis (1836-1904), em O Alienista 4, no qual Bacamarte, um médico psiquiatra do final do século XIX, atribui a condição de loucura a qualquer comportamento que lhe parece peculiar, chegando ao ponto de internar mais da metade da cidade em seu hospital. Assim sendo, temos uma loucura com dificuldade em definir seus limites tanto em Bicho de Sete Cabeças, quanto no livro de Machado e, lamentavelmente, no passado brasileiro. “Um desgosto pode levar à loucura, uma morte da família, o abandono de um grande amor. A gente até precisa fingir que é louco sendo louco... fingir que é poeta sendo poeta!”, diz uma das pitorescas personagens no segundo ato.


Pasmem, também, para o modo que uma certa arqueologia da loucura é feita pelo sistema que alega, segundo o doutor do hospital, estar tratando, no caso de Neto, “Não apenas a probabilidade de dependência das drogas, mas os distúrbios de personalidades”. Probabilidade esta verificada apenas pela denúncia de seus familiares e distúrbio este atestado com base unicamente na conduta inconformista do protagonista, inexistindo sequer um diálogo para o diagnóstico. Dessa forma, tem-se um diagnóstico que opera de maneira essencialmente política por uma sociedade que é capaz de, paradoxalmente, abominar compulsivamente certas drogas, como a maconha, ao passo que se utiliza de outras, a exemplo do álcool e do cigarro, como remédio para sintomas de ansiedade e depressão.


Nesse sentido, tal temática da “politização da medicina” foi aprofundada por Michel Foucault (1926-1984), em História da Loucura (1975), através da historização dos mecanismos de poder e suas reformulações e perspectivas de loucura desde a Era Clássica (a partir de Descartes) até a segunda metade do século XX. No livro, Foucault nota a existência de uma certa política do internamento que não possui coerência médica, psicológica e psiquiátrica, mas é reflexo de uma crítica política 5. Uma loucura que costumava a se sobressair apenas no abstrato plano simbólico – na arte e na religião -, mas que agora, através das instituições, adquire uma forma concreta e política com agentes que se articulam, interagem, julgam, desdobram e se moldam. Com isso, dá-se luz a uma sociedade punitiva. Ouse saber: uma sociedade que parece delinear muito bem seus alvos.

Tal crítica transcende o manicômio. Em determinado momento do segundo ato, a título de exemplo, o protagonista, após sair temporariamente do manicômio, terá de experimentar o que será a nova convivência em sociedade diante da abominável marca de ex-viciado que o hospital lhe atribuiu. Nesse sentido, o longa acerta com sutileza ao mostrar uma família que pune sem querer o filho através de sentimentos que não poderiam ser mais arrebatadores quando vindos dos próprios pais, tais como a tristeza (“Eu e sua mãe estamos tão tristes!”) e o desapontamento (“Vagabundo!”). Não obstante, a punição para além do hospital também ocorre fora de seu ciclo familiar. Quando Neto vai até a casa de um amigo (Gustavo Machado) para visitá-lo, a mãe deste o expulsa, alegando que não quer ver o filho andando com esse “tipo de gente”. Assim, fica evidente que a etiqueta de delinquente não sairá de Neto imediatamente a sua soltura. Ainda haverá um longo processo de punição e desgaste do sujeito que se estenderá para fora do ambiente manicomial até que Neto consiga finalmente reintegrar-se na sociedade.


Sendo assim, Bicho de Sete Cabeças é um documento histórico de um longo fragmento da história brasileira em que o limiar de doença mental era atribuído genericamente a diversos padrões de comportamento que feriam a equivocada concepção de normalidade para a convivência e bem-estar de uma época. Um período em que a política, e não a ciência, faziam tais ajustes; em que o “tratamento punitivo” se estendia também para a vida pós-hospitalar. Hoje, felizmente, a situação mudou: estamos caminhando, mesmo que devagar, contra a direção de internar boa parte do Brasil, tal como fez Bacamarte em sua pequena cidade. Reduzimos o número de leitos no país para 15.532.² Em Belo Horizonte, por exemplo, há centros de acolhimento onde a arte e o afeto, e não a coerção, são as bases para um tratamento mais digno e eficaz. No entanto, mesmo assim, ainda há diversos centros de recolhimento com doentes mentais em situações precárias e que acabaram ali devido a um abandono pela família6, demonstrando o quanto ainda somos nós, enquanto sociedade, que determinamos quem deve ou não ser internado. A sociedade punitiva de Foucault ainda é capaz de refletir com segurança a realidade brasileira. Não podemos, infelizmente, atribuir a Bicho de Sete Cabeças a categoria de ficção e, ainda, de apenas passado. A luta antimanicomial não pode parar.

Gabriel Linares, 2020.


Referências:

  1. Verso da música “Bicho de Sete Cabeças”, composta por Geraldo Azevedo e Zé Ramalho e letra de Renato Rocha.

  2. MOREIRA, Anelize. No Brasil, hospitais psiquiátricos se tornam moradias por tempo indeterminado. Brasil de Fato, 2019. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2018/05/18/luta-contra-manicomios-combate-a-industria-lucrativa-da-loucura. Acesso em 12 de outubro de 2020.

  3. DOTTA, Rafaella. Luta contra manicômios combate a indústria lucrativa da loucura. Brasil de Fato, 2018. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2018/05/18/luta-contra-manicomios-combate-a-industria-lucrativa-da-loucura. Acesso em 12 de outubro de 2020.

  4. ASSIS, J. M. Machado. O Alienista.

  5. FOUCAULT, Paul-Michel. História da Loucura. 1961, p. 103.

WIJK, Lívia B. e MÂNGIA, Elisabete F.; Atenção psicossocial e o cuidado em saúde à população em situação de rua: uma revisão integrativa, 2019.


Imagem da capa: Autor desconhecido

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