
Um Brasil sem a República é praticamente inimaginável. Apesar de todas as convulsões sociais e políticas que a nossa Ilha de Vera Cruz tem passado, a possibilidade de um choque institucional que coloque o regime republicano em cheque passa longe de qualquer relevância. Mas faz relativamente pouco tempo desde que essa possibilidade foi real. Na verdade, existia a chance de trazermos um monarca de volta na década de 90. Essa história, a do plebiscito de 1993, é um emaranhado caótico de problemas jurídicos e políticos que, embora pouco conhecido, virou uma das anedotas históricas mais interessantes do Brasil contemporâneo.
O que mais chama a atenção nessa história é, obviamente, o monarquismo.
Desde a Proclamação da República em 1889, redutos de apoiadores do Império e da deposta família imperial se organizaram com o objetivo de reverter a súbita mudança de governo. Diversas revoltas, por exemplo, tiveram lideranças monarquistas: A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, a primeira Revolta da Armada, a Revolta de Ribeirãozinho e parte dos integrantes do Levante Integralista contaram com alguma aspiração monarquista em suas colunas. Mas a oposição ao republicanismo também reverberou dentro da política nacional uma série de vezes, quando Ruy Barbosa declarou-se monarquista, ou quando surgiu a Ação Imperial Patrianovista Brasileira, comandada pelo intelectual Arlindo Veiga dos Santos, por exemplo. Até mesmo a Ditadura Militar flertou supostamente com a ideia de desenterrar o Império em 1964, projeto esse que não progrediu por uma recusa do patriarca dos Orléans e Bragança de assumir o trono sem aclamação popular.
Apesar de participações esporádicas em alguns eventos da história brasileira, o movimento monarquista, fragmentado e desorganizado, nunca conseguiu uma vitória expressiva para sua causa. Dom Pedro II, embora popular durante seu reinado, era somente uma memória distante e arcaica para o brasileiro médio – restaurar o Império soava como um experimento mental engraçado, mas irrelevante. A última chance da realeza verde e amarela reclamar sua coroa se deu no advento da Nova República, e tem nome e sobrenome: Cunha Bueno.
Paulista paulistano, Antônio Henrique Bittencourt Cunha Bueno era filho do ex-deputado Antônio Silvio Cunha Bueno, um defensor da descentralização no governo brasileiro e do municipalismo até sua cassação pelo AI-5. O futuro campeão do monarquismo se formou economista e trabalhou em uma seguradora até sua eleição para deputado estadual em 1970, logo após o término da carreira de seu pai. Para quem conquistou mais seis mandatos e se tornando um aliado próximo de Paulo Maluf, sendo seu secretário de cultura enquanto o último fora governador, sua participação na então Assembleia Constituinte era pouco expressiva. Como o único parlamentar declaradamente monarquista, Cunha Bueno tinha poucos aliados, senão os malufistas que ainda restavam em um PDS despedaçado pelas eleições indiretas. Mas, surpreendentemente, o constituinte conseguiu convencer o relator da constituição de 88, Bernardo Cabral, a remover do documento a “Cláusula Pétrea” que assegurava o regime republicano. Essa foi a primeira vez desde a conflagração da República que uma constituição não contava com um artigo que entrincheirasse o presidencialismo. A conquista foi um momento de epifania para Cunha Bueno, claro – mas mais ainda para os parlamentaristas.
Em março de 1988, o deputado propôs a fusão do plebiscito pela forma de governo, república ou monarquia, com um pelo sistema de governo, presidencialismo ou parlamentarismo. Embora o monarquismo fosse minoritário, o parlamentarismo não era, e viu uma oportunidade única de conseguir mudar o sistema de governo a seu favor. O PSDB, mais novo titã da política brasileira erguido por Mário Covas, tinha em seu cerne a defesa do sistema parlamentar, juntamente de algumas expressivas alas do MDB e do finado PFL. Seria mais excêntrico promover uma briga entre a frente parlamentar de um homem só, representada por Bueno, e a república, mas uma disputa séria somente poderia ocorrer entre os pesos-pesados que defendiam o republicanismo parlamentarista e o presidencialista.
Então foi decidido em uma votação quase unânime de 453 votos a favor e três contrários, que seria realizado um plebiscito em 7 de setembro de 1993 para que a população brasileira decidisse como seu país deveria ser gerido – evidentemente, até a data, um turbilhão de coisas ocorreram, sendo duas delas Presidentes da República.
José Sarney assumiu como o primeiro presidente civil, e no seu colo explodiu a hiperinflação, gestada desde o Milagre Econômico, que implodiu a economia brasileira dada uma série de medidas fiscais ineficazes. Na esteira do debacle do governo Sarney, elegeu-se o carismático “Caçador de Marajás” alagoano, Fernando Collor, nas eleições de 1989. Apesar das expectativas populares quanto a seu governo, o presidente terminou o mandato melancolicamente com o fracasso homérico do Plano Collor, culminando em seu impeachment e renúncia em 1992. Dois governos desastrosos seguidos e o surgimento de dois presidentes intensamente odiados pela maioria da população deram algumas boas esperanças para os monarquistas e parlamentaristas. Quem sabe as catástrofes políticas recentes não convenceriam os brasileiros a mudar? Para completar, o chefe do executivo que sucedeu Collor era Itamar Franco, um homem desinteressado na presidência e simpático ao modelo parlamentarista.
Os presidencialistas, abarcando nomes como Leonel Brizola e Lula, perceberam a mudança de ventos e acirraram as disputas.
Foram formadas três frentes parlamentares para representar cada uma das possíveis opções do plebiscito, a Frente Republicana Presidencialista, a Frente Republicana Parlamentarista e a Frente Monarquista. Apesar de apenas três opções, a cédula desenhada para a ocasião possibilitava também que o eleitor escolhesse uma monarquia presidencialista como forma de governo, já que, por sugestão do próprio Cunha Bueno, forma e sistema deveriam ser votados individualmente.

Duramente criticada pelos parlamentaristas e monarquistas, a cédula sofreu acusações de indiretamente associar monarquia a parlamentarismo, além do escancarado problema matemático para os monarquistas, já que mesmo cédulas com uma monarquia presidencial ainda seriam contabilizadas em prol do presidencialismo.
Apesar de suas imperfeições, a cédula não mudou, e foi com ela que os brasileiros votaram.
A própria data da votação também configurou um problema. Inicialmente marcada para o 171º aniversário da independência, o plebiscito foi antecipado para 21 de abril do mesmo ano, no feriado de Tiradentes. Colocar o plebiscito no feriado que homenageia um herói repúblicano foi outro fator que causou descontentamento entre os monarquistas, o que fez com que Cunha Bueno entrasse com uma ação contra a mudança, alegando que ela dava menos tempo de campanha para as frentes parlamentares e favorecia os republicanos.
Em 19 de fevereiro de 1993, às vésperas do plebiscito, as campanhas das frentes parlamentares tiveram início em todo o território nacional. O plebiscito contou com a primeira aplicação em larga escala do horário eleitoral gratuito, sendo o tempo distribuído mais ou menos igualmente entre as frentes de campanha, que utilizaram-se todas do exato mesmo evento para argumentar a superioridade do modelo que defendiam: o impeachment de Collor.
Para os presidencialistas, que adotaram o nome de Frente Diretas Sempre, o sistema defendido por eles era o único capaz de representar a vontade popular, utilizando-se da pressão feita pelo movimento dos Caras-Pintadas contra Collor como a prova cabal de que o presidencialismo é a mais pura representação da autonomia dos três poderes e da agência da população. Ainda argumentando em cima do impeachment, os presidencialistas afirmaram que por estarem comprometidos com oligarquias poderosas, os parlamentares não iriam atender à vontade popular, e Collor teria sido o chefe de Estado até o momento se não fosse pelo sistema presidencialista. Por fim, o “erro” de eleger Fernando Collor foi um resultado da inexperiência do brasileiro com a democracia, já que essa era sua primeira eleição direta em mais de 20 anos, e a tentativa parlamentarista de usar o impeachment como justificativa era um ato autoritário.
Do outro lado, os parlamentaristas usaram o impeachment para provar que repúblicas presidenciais são instáveis e geram processos truculentos, dramáticos e traumáticos. Além disso, afirmaram que se não fosse pelo Congresso Nacional, defensores e representantes da vontade popular, os escândalos de corrupção durante o governo não seriam investigados e tramitados. Os parlamentaristas usaram isso para mostrar que o sistema presidencialista é um loteamento sujo e corrupto de cargos, transbordando com negligência e nepotismo.
Por fim, o argumento da frente monarquista, embora convergisse com os parlamentaristas republicanos, afirmava que, para garantir estabilidade, o país precisava de um poder moderador, apartidário e comprometido com a governança imparcial do país – um rei criado desde a infância somente para reinar. Não haveria possibilidade de sucesso em um caótico sistema republicano para os monarquistas. Nas palavras de Cunha Bueno, “é preciso discutir o sistema e não somente trocar o presidente como nós temos feito a cada quatro anos durante 104 anos e não temos conseguido resolver o problema”.
Apesar da disputa ferrenha, o fato é que a campanha monarquista estava fadada a dar errado. Primeiramente, quem seria o rei? A resposta pode parecer fácil, já que o chefe da casa imperial, Luiz Gastão de Orleans e Bragança, do ramo de Vassouras, era o candidato mais óbvio e disposto a assumir o trono. Mas seu direito sucessório esbarrava na oposição do ramo rival de sua família, o de Petrópolis, comandada por Pedro Gastão, devido a um sismo entre os monarquistas após a renúncia do direito ao título pelo neto da Princesa Isabel, Pedro de Alcântara. Além disso, ambos os pretendentes eram nascidos na França, e rapidamente os republicanos transformaram esse fato em uma acusação de que os monarquistas queriam que um estrangeiro governasse o Brasil. Finalmente, Dom Luiz e seu irmão, Dom Bertrand, eram conhecidos por seu ferrenho e radical conservadorismo, e considerando que mais de 80% do congresso se declarava ou de centro ou de esquerda à época, as perspectivas dos herdeiros imperiais eram particularmente desanimadoras.
Se não bastasse a briga novelística da realeza, apenas dois parlamentares na Câmara no Senado eram monarquistas, Cunha Bueno e o senador Ney Suassunga, constantemente caçoado e isolado entre seus colegas, Ney tentou atrair outros senadores para a causa monarquista, mas diálogos como o retratado abaixo entre ele e Jarbas Passarinho, do PMDB, eram ocorrências rotineiras.
“- [...]— Considere-se também semimonarquista. Pondere, pense e deixe nas suas conjecturas também a alternativa monarquista, porque seria um grande ganho para a nossa causa
— Aleluia! Eu não sabia que havia no Senado um forte concorrente a barão ou duque!
— Não. Só teremos a família real em primeiro grau. Os demais [nobres] não existirão. Mas será, com certeza, mais permanente e econômico.
— Então Vossa Excelência já tirou todas as minhas aspirações. Se houvesse a monarquia, eu iria pleitear pelo menos o baronato de Xapuri”
Com o impasse mexicano reduzido a um duelo entre republicanos, os presidencialistas dispararam na frente graças aos nomes hercúleos por trás de sua causa: o trabalhista Leonel Brizola carregou a campanha com o furor que fazia parecer que sua própria campanha presidencial estava em jogo. Afirmando que o presidencialismo havia se “divorciado da monarquia e se casado com o povo”.
O extremamente popular caudilho atraiu uma parcela considerável da população para sua causa. Sem o PDT de Brizola, a campanha presidencialista teria enfrentado uma batalha colina acima, mas não sem contar do mesmo jeito com uma grande vantagem sobre os parlamentaristas na forma de Antônio Carlos Magalhães, uma presença quase hegemônica na política baiana que consolidou a força do presidencialismo pelo nordeste, enquanto Orestes Quércia e seu sucessor, o governador de São Paulo Luiz Antônio Fleury Filho, disputavam a tapas os votos da população pelo plebiscito com os tucanos paulistas de Covas. Obviamente, a popularidade ascendente de Lula e do PT praticamente sinalizaram para uma vitória iminente dos presidencialistas. Essa “frente ampla” pelo presidencialismo, por um lado sendo criticado pelos parlamentaristas, agora a Frente Parlamentarista Ulysses Guimarães, como um símbolo da desunião e geração de picuinhas inerente ao presidencialismo, serviu para penetrar a causa presidencialista nas massas – que já não viam motivo para votar nessa “bobagem” que havia se tornado o processo.
Contados os votos, os presidencialistas tiveram uma vitória acachapante sobre os monarquistas, com 66% dos votos pelo republicanismo, contra 10% pela monarquia e 23% de brancos e nulos. A frente presidencialista também esfregou os parlamentaristas no asfalto, ganhando a votação por mais de 55% dos votos, contra 24% de seus rivais e 19% de brancos e nulos. No total, 25% do eleitorado se absteve da votação.
Chega então ao fim a saga da briga mais heterodoxa da história eleitoral no Brasil. Apesar de disputas eloquentes, acabou em feijoada. A sobrevivência da república, mesmo sem uma cláusula pétrea para garanti-la, consolidou o regime por mais três décadas e enterrou quase que completamente qualquer possível mudança mais drástica. Para a alegria de uns e tristeza de outros, a democracia foi de fato coroada – sem joias, sem ouro, somente a clássica faixa verde e amarela e título de “presidente”.
Autoria: Guilherme Neto
Revisão: Ana Carolina Clauss e Laura Freitas
Imagem de capa: Agência Globo/Eleições Brasil, Montagem do Autor
Referências:
CARVALHO, Andreza. “VOTO REBELDE É NA MONARQUIA!”: a disputa entre monarquistas x republicanos e parlamentaristas x presidencialistas no plebiscito de . [s.l.]: UFRGS, 2018. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/189308/001086923.pdf?sequence=1
>. Acesso em: 28 jul. 2024.
NÉMETH-TORRES, Geovani . A odisséia monarquista no Plebiscito Nacional de 1993. Revista Veredas da História, v. 1, n. 1, 2008.
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